Nome Original: The Sandman: Endless Nights
Editora/Ano: Panini, 2014 (DC/ Vertigo, 2003)
Preço/ Páginas: R$25,90/ 160 páginas
Gênero: Fantasia/ Alternativo
Roteiro: Neil Gaiman
Arte: P. Craig Russell, Milo Manara, Miguelanxo Prado, Barron Storey, Bill Sienkiewicz, Glenn Fabry e Frank Quitely.
Sinopse: Seja assombrado, agridoce, erótico ou digno de pesadelos, os sete contos desta edição – um para cada um dos Perpétuos – revelam estranhos segredos e surpreendentes verdades. Cada história é ilustrada por um grande quadrinista.
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Neil Gaiman dispensa apresentações, é um dos melhores (e mais renomados) roteiristas de HQs, autor de A Paixão do Arlequim e Orquídea Negra, além de prestigiado escritor de romances e livros infantis (Deuses Americanos, Stardust, Coraline). Talvez sua obra mais importante seja a série Sandman, que escreveu entre 1989 e 1996 em 75 edições originais (aqui, compiladas em encadernados e nas recentes Edições Definitivas). Mesmo após o fim da série principal, Sandman e sua mitologia continuaram vivos através de outros autores, como em Contos Fabulosos e Os Pequenos Perpétuos.
Em 2003, Gaiman é convidado a escrever mais uma história do Sonhar, dessa vez uma para cada um dos 7 Perpétuos, os irmãos que personificam características universais: Morte, Desejo, Desespero, Delírio, Destino, Destruição e Sonho (o Sandman). E ele convida um artista diferente para ilustrar cada uma dessas histórias, além do parceiro de longa data Dave McKean (que fez todas as 75 capas de Sandman) para criar o design da capa e páginas, nascendo este álbum: Noites Sem Fim. Antes de mais nada, é importante comentar o quanto esta edição é interessante não apenas para os leitores de quadrinhos, mas para todos àqueles que desenham, ilustram ou sonham em ser um artista, devido sua diversidade de traços, estilos narrativos, técnicas etc. É uma experiência visual incrível, elevando o status de quadrinho à outros patamares artísticos.
Gaiman conseguiu reunir um time de peso, como Milo Manara para desenhar a história de Desejo, Frank Quitely para a do Destino e ninguém menos, ninguém mais, que Bill Sienkiewicz para a de Delírio! Fechando o time, temos outro parceiro de longa data, P. Craig Russell, e os não tão conhecidos Glenn Fabry, Miguelanxo Prado e Barron Storey. Como qualquer publicação desse tipo, há histórias que agradam mais e outras menos… Vamos dar uma olhada em cada uma!
Cap. 1 – Morte e Veneza: abrindo o álbum, um conto da irmã mais querida dos Perpétuos: Morte. Ao contrário de quase todas as personificações da Morte, esta é a mais simpática e adorável, com seu visual gótico suave, mostrando que o fim da vida não é tão sombrio como dizem. Morte e Veneza é uma típica história de Sandman, poderia aparecer facilmente na série principal. A narrativa é Neil Gaiman clássico, com referências históricas e bastante romanceado: um reino de uma pequena ilha está preso num dia do século XVIII, repetindo-o todos os dias. Ninguém morre, nada muda. Permitindo que o Rei e sua corte façam as mais diversas festas que se possa imaginar durante séculos. Por algum motivo, Morte não consegue acessar esta ilha sem a intervenção de um humano, pelo lado de fora, então ela aguarda pacientemente até que este momento chegue.
É uma boa história, trazendo a essência da série de Sandman, todos aqueles que já leram vão se sentir familiarizados, principalmente por conta dos desenhos de P. Craig Russell, que já havia trabalhado com Gaiman na graphic novel de Coraline. Sua arte é bastante limpa e uma das mais tradicionais, em relação a HQ, desta edição, porém possui uma versatilidade grande, além de ser rico em detalhes e saber utilizar cada espaço da página. Gaiman consegue trazer a velha história de um cotidiano que se repete (inclusive, também já usei no conto A Flor do Mandacaru) e a leva para outro patamar, sendo o mais interessante a abertura que faz dentro da mitologia do Sonhar, com esses lapsos da Morte.
Cap. 2 – O Que Experimentei de Desejo: em seguida vem o icônico Perpétuo, que não é homem ou mulher, mas os dois, personificando todos os desejos do universo: a/o Desejo. Na história, uma camponesa se apaixona por um garanhão, sendo capaz de tudo para que ele a note. Com o passar do tempo, percebe que se entregar de primeira não é o caminho mais simples para isso. A história não chega a impressionar como algumas outras do álbum, sendo o principal destaque os desenhos do mago da arte erótica, Milo Manara. Para quem não conhece, o italiano é famoso por seu traço limpo, com as cores típicas das HQs europeias e por suas mulheres, sempre sensuais. SEMPRE.
Milo Manara é de encher os olhos, quem nunca leu algo desenhado por ele, como a série Bórgia, Kama Sutra ou sua contribuição para a Marvel em X-Men – Garotas em Fuga, vai ficar maravilhado com o seu estilo. Para outros que já são familiares, como eu, não irão se encantar tanto. Manara consegue criar cenários incríveis e altamente detalhados, suas cenas amplas são fenomenais, assim como a construção de mobilha e vestimentas, como é possível ver na série Bórgia. Porém suas personagens são todas iguais e, particularmente, isso enjoa um pouco…
Cap. 3 – O Coração de Uma Estrela: uma obra de arte. Só isso que pude pensar depois de terminar este conto. Sem nenhuma dúvida, é o ponto alto de todo o álbum, que já é recheado de ótimas histórias. E coincidentemente, trata-se de Sonho. Na história, nos confins dos tempos, Morfeus convida Killala do Fulgor para ir à uma reunião, como sua companheira. Além dos dois, esta convenção reúne os demais perpétuos e todo tipo de sóis, luas, planetas, estrelas e demais personificações da galáxia. Uma reunião para discutir sobre o futuro, distribuição de trabalhos, burocracia. Em meio a encontros e desencontros, Killala conhece Helius, um sol, e a visita de Sonho toma um outro rumo.
Além de ser uma história clássica de Neil Gaiman, principalmente pra quem já leu Sandman (que na série surge com algumas namoradas, como Nada), ele realça mais uma vez sua personalidade, sendo o mais sombrio (e talvez mais insensível) de todos os Perpétuos. E a arte é maravilhosa! Não conhecia o trabalho do Miguelanxo Prado, mas já virei fã! Infelizmente, não há muita coisa dele publicada por aqui, além de algumas histórias na Heavy Metal antiga, o que é uma pena. Seu traço é surreal e fantástico, com cores lindas, dando todo o ar onírico e leve que Sandman possui. Os personagens/ personificações são incríveis, deixando a história de Gaiman, que é linda, ainda mais bela. A cena final, fechando toda a história sobre Sol, Terra e sonhos, é uma obra de arte.
Cap. 4 – Quinze Retratos de Desespero: a partir de agora, o álbum entra numa viagem visual mais experimental e pouco usual nos quadrinhos, com quebra de narrativa, colagens e com ares de livro ilustrado. Este conto de Desespero, que é a irmã gêmea de Desejo, não conta uma única história, mas várias que podem (ou não) interagir entre si. São quinze retratos, quinze faces de Desespero que presenciamos ou podemos presenciar diariamente. Só por fugir do tradicional, já ganha méritos, e ela, assim como a próxima, é daquelas histórias que precisam ser lida aos poucos, apreciando cada página.
O artista é Barron Storey, que também não possui outro material publicado por aqui, um desenhista de mão cheia, com traços pesados e que influenciou muitos artistas, inclusive Bill Sienkiewicz, que está neste álbum. O próprio Dave McKean foi influenciado por ele e assina o design deste conto, recheado de metalinguagem e traz uma versatilidade de diagramação excelente, quase um guia narrativo. Talvez seja um dos contos que mais englobou a alma de um Perpétuo, cada página é uma aflição, seja no próprio desenho, seja no acúmulo de informação.
Cap. 5 – Entrando: chegamos em Delírio, a personificação da loucura e o Perpétuo mais psicodélico de todos. Delírio é uma moça de bem com a vida, nonsense, as vezes com visual punk, as vezes infantil. Neste conto, ela está presa num plano onde só pode ser ajudada por humanos, ficando nas entrelinhas o que ela sofreu. Com a sua natureza, ela consegue reunir cinco pessoas descontroladas para irem ao seu encontro, auxiliadas por Barnabás, seu cachorro.
O conteúdo deste conto está muito presente em seu subtexto, precisando ser lido diversas vezes pra chegar num real entendimento da coisa. O que não atrapalha, mas sim engrandece a obra, podendo ser apreciada em diversos níveis. Ao lado do de Sonho, considero o melhor do álbum. Desde o abuso de Delírio, aos abusos pessoais de cada uma das 5 pessoas reunidas, cada conflito é tratado de maneira peculiar. E o grande mérito de toda a narrativa está em Bill Sienkienwicz, o desenhista de traços psicodélicos e caóticos, misturando diversas técnicas, desde a colagem à aquarela. Elektra Assassina e Wolverine: Fúria Interior são dois trabalhos onde podemos ver Bill em seu ápice. Assumo minha tietagem: ele, ao lado de McKean, são minhas inspirações máximas. Mas como não se encantar com essas páginas? Além do subtexto, há inúmeras referências ao universo pop, como os Beatles, e aquele recurso de deixar cada voz num estilo de recordatório/ balão diferenciado, deixando uma segunda leitura mais profunda.
Cap. 6 – Na Península: Destruição é um Perpétuo enigmático, que permanece em reclusão até metade da série Sandman. Neste conto, que ocorre após o da Delírio, cronologicamente, os dois estão numa península e a presença deles estão afetando o lugar, ou eles foram para lá por conta disso. Em paralelo, uma pesquisada está investigando uma pedra que contém objetos do futuro dentro. A história é um enigma, terminando do modo como começa. Não é a melhor do álbum, porém possui ótimos momentos. A própria Delírio rouba a cena, mais que seu irmão.
Os desenhos são de Glen Fabry, que segue por um caminho mais tradicional. É quase um alívio, depois das experimentações anteriores. Sua arte é bonita, gostosa de ler, sexy e informativa na medida certa, assim como o sóbrio e a loucura. Seu trabalho é conhecido, principalmente, pelas capas das séries Preacher e Hellblazer.
Cap. 7 – Noites Sem Fim: fechando o álbum, em tom mais intimista e calmo, o Perpétuo que tudo sabe, cego e acorrentado ao seu livro: Destino. Ao contrário das outras, esta é uma mini narrativa, sem uma história propriamente dita, que ocorre no reino de Destino e, se observando todo o contexto dos 7 contos, se encaixa perfeitamente. O artista convidado é Frank Quitely, outro que admiro bastante, conhecido por seus desenhos dinâmicos e amplos, além da caracterização facial que é sua marca registrada, com bastante rugas e expressões (que apelido de Beavis & Butt-head). Seu trabalho mais conhecido é WE3 e sua passagem nos Novos X-Men de Grant Morrison. Confesso que fiquei com gostinho de quero mais, pois é muito curta e Quitely é ótimo.
Noites Sem Fim acaba se tornando um álbum bastante particular, reunindo histórias ótimas, artistas de estilos diferentes e consagrados, além de apresentar ao público personagens icônicos de Sandman e, para àqueles que já são fãs, Gaiman nos dá, mais uma vez, aquilo que só ele consegue escrever. O acabamento é ótimo, em capa dura e papel de qualidade, o design feito por McKean para a introdução, capas internas e biografia dos envolvidos também auxilia nessa identidade visual de Noites Sem Fim que, para além das HQs, é um ótimo livro de arte e narrativa. E como qualquer livro que reúne diversas histórias, umas irão agradar mais, encantar mais, enquanto outras irão incomodar ou serão mais neutras.
Vale comentar que Noites Sem Fim já havia sido publicado, em 2003, pela Editora Conrad, num formato luxuoso e caro. A Panini acertou a mão em relançá-lo num ótimo preço. A tradução é um ponto sempre recorrente em Sandman, alvo de críticas e elogios. Os 7 Perpétuos (The Endless) iniciam, todos, com D (Desire, Dream, Destruction, Death…), uma característica que se perdeu em português. O próprio título original (Endless Nights) possui uma relação com os Perpétuos, que perdeu-se na tradução, também, apesar de muito acertada.
Fil Felix é autor, ilustrador e psicanalista. A Central dos Sonhos é seu universo particular, por onde aborda questões como memórias, desejos e infância. Fã de HQs, escreve seus comentários sobre quadrinhos desde 2011, totalizando mais de 600 reviews. Já escreveu sobre arte para diversos blogs como Os Imaginários e a coluna Asas da editora Caligo. Ilustrou os livros infantis Zumi Barreshti (2021, Palco das Letras) e Meu Avô Que Me Ensinou (Ases da Literatura), entre outras publicações.