Para quem já leu o livro ou assistiu ao filme, toda a essência da história está nesta graphic novel. P. Craig Russell já é experiente em adaptar obras, tendo transportado diversas óperas para os quadrinhos, como O Anel dos Nibelungos, de Wagner; A Flauta Mágica, de Amadeus; e diversas fábulas de Oscar Wilde. Vencedor de vários prêmios, Coraline é outra adaptação sua. O unico senão é que, para quem conheceu Coraline através do filme, estranhará a ambientação utilizada pelo autor, mais realista e não fantasiosa como no cinema.
A história gira em torno de Coraline, uma menina que adora explorar novos lugares, e de seus pais, sempre ocupados e ausentes. A família acaba de se mudar para um novo apartamento e Coraline inicia sua exploração pelas redondezas, conhecendo seus vizinhos (duas velhinhas que adoram relembrar a juventude e um velho misterioso que diz conversar e ter um circo de ratos. Todos sempre erram o nome da menina, insistindo em chama-la de Caroline. Numa de suas andanças, descobre uma porta trancada na casa e, ao abri-la, descobre apenas um muro. Sua mãe crê que antes havia uma ligação ao cômodo ao lado e que, quando dividiram a casa, muraram a porta. Coraline não fica totalmente satisfeita com a resposta mas tenta acreditar. Naquele mesmo dia, entediada, acaba caindo no sono e, ao acordar, decide verificar a porta novamente. Para sua surpresa, o muro não está mais lá, há apenas um corredor escuro.
Ao atravessa-lo, chega numa sala igual à que estava, numa casa muito parecida com a sua. Coraline acha tudo muito estranho e as coisas só pioram quando conhece seus “outros” pais, um casal bem estranho, com botões em lugar dos olhos, que dizem ser seus pais. Na vizinhança também há versões estranhas de seus “outros” vizinhos. Em sua outra casa, Coraline explora todo o ambiente e percebe o contraste entre sua realidade e a que se encontra, com seus outros pais atenciosos e “carinhosos”, vizinhos divertidos e estranhos. Ao mesmo tempo que tenta descobrir o mistério que envolve a outra mãe e a casa. Os desenhos são ótimos, tudo muito bem colorido e polido, graças às cores de Lovern Kindzierski (que já trabalhou com Russell em títulos como Fair Tales of Oscar Wilde), parecendo um filme de animação, tamanha fluidez dos traços. Sua atenção é capturada à cada página virada, em fantásticas sacadas de continuação, como na página 66-67, onde Coraline conversa com o gato e passam pela porta que leva à outra casa. É interessante reparar também nas diversas referências espalhadas pelo álbum, como um livro de Meu Amigo Totoro, animação do estúdio Ghibli.
Devido à ótima narrativa, o desenrolar da trama se assemelha bastante à um conto de fadas, como no trecho inicial “Coraline descobriu a porta pouco depois de terem se mudado para a casa. Era uma casa muito antiga – com um sótão sob o telhado… um porão sob o chão… e um jardim coberto de vegetação e de árvores grandes e velhas.” Porém, a protagonista não possui expressões muito definidas, há momentos de tensão que a personagem fica com cara de “paisagem”, como se levasse todos os estranhos acontecimentos com naturalidade. Essa situação só muda ao se aproximar do fim, onde podemos ver feições de raiva e felicidade mais definidas. Pode ser que seja para demonstrar a “infelicidade” da menina, que foi transformada ao decorrer da história. Mas no final ficou bem estranho. Fora isso, Coraline é uma ótima leitura, que lembra muito as aventuras de Alice no País das Maravilhas. Guardando as devidas diferenças, em ambos a protagonista descobre um universo paralelo através de algum animal, há um gato que a guia, dizendo frases “vazias e sem sentido”, personagens surreais e a dúvida que fica em torno dos acontecimentos, se são reais ou apenas um sonho.
Apesar de não ser a protagonista, a outra mãe consegue brilhar tanto quando Coraline. Sua cenas são ótimas, como quando é desafiada ou na cena em que come insetos. Seus “trejeitos” foram bem adaptados, como o estralar dos dedos. Pode parecer irônico, mas seu “olhar” de botão e seu sorriso para com Coraline parace uma predadora observando sua presa. A edição da Rocco possui ótimo acabamento, em brochura, com páginas grossas e lisas (sempre esqueço o nome desse tipo de papel). Só falha em não ter extras, ou uma pequena biografia dos autores envolvidos, considerando o valor alto.
Fil Felix é autor, ilustrador e psicanalista. A Central dos Sonhos é seu universo particular, por onde aborda questões como memórias, desejos e infância. Fã de HQs, escreve seus comentários sobre quadrinhos desde 2011, totalizando mais de 600 reviews. Já escreveu sobre arte para diversos blogs como Os Imaginários e a coluna Asas da editora Caligo. Ilustrou os livros infantis Zumi Barreshti (2021, Palco das Letras) e Meu Avô Que Me Ensinou (Ases da Literatura), entre outras publicações.