Arcos Principais: Tesão de Viver (Lust for Life).
Publicação Original/ Brasil: 2020 Visions #1-3 (Vertigo, 1997)/ Visões de 2020: Tesão de Viver #1-3 (Abril, 1998).
Roteiro/ Arte: Jamie Delano/ Frank Quitely.
Visões de 2020 foi uma série em 12 edições publicada pela Vertigo em 1997, escrita por Jamie Delano (Hellblazer). São quatro histórias diferentes, cada qual desenhada por um artista, onde o autor narra sua visão futurista do ano 2020, quais tipos de relações teríamos uns com os outros, com a cidade, o planeta, entre outros questionamentos. O primeiro e o segundo arco, Tesão de Viver (#1-3) e La Tormenta (#4-6), foram publicados pela Editora Abril ainda em 1998. As demais histórias Renegado (desenhos de James Romberger) e Repro Man (desenhos de Steve Pugh) permanecem inéditas no Brasil até hoje, mas alguns fãs chegaram a traduzir. Com toques de William Burroughs (Almoço Nu) e Moebius (Arzach), é uma leitura alternativa muito recomendada. Review especial da primeira história, Tesão de Viver, sem muitos spoilers!
TESÃO DE VIVER
É sempre interessante fantasiar como será o futuro. Algumas décadas atrás sonhávamos com carros voadores e roupas prateadas. Imaginar 20 anos no futuro, podemos pensar que haverá de tudo em 2040. E parece tão longe! Jamie Delano (Hell Eternal – Inferno em Vida), em 1997, imaginou como viveríamos em 2020. Com toques de BDSM, muito latex e lycra, seu futuro é extremamente sexual e decadente, dominado por um governo feminista. As pessoas ricas e bem de vida vivem na Muralha, um complexo dentro de NY, onde tudo funciona. As demais pessoas vivem, ou tentam sobreviver, ao redor da Muralha, renegados. Nesse universo, atletas puxam carroças e são os novos taxistas; pessoas são vendidas como escravos sexuais; e uma doença, um novo vírus altamente contagioso, passa a contaminar boa parte da população: um vírus que deixa a pessoa transpirando sangue, mas que dá um tesão de viver; uma vontade de transar com tudo e todos. Nosso protagonista é Alex Woycheck, um senhor de 70 anos, que atuava na industria de revistas pornográficas, antes delas serem banidas. E numa ironia do destino, ele acaba contraindo o vírus.
Essa ideia de futuro hiper-sexualizado (da qual não estamos muito longe), é algo muito frequente na imaginação de alguns autores. Temos o Pau Doido de Moebius e 100% do Paul Pope. Ou a a recente The Beauty de Jason A. Hurley, que trouxe a DST Beleza, pra citar alguns exemplos. Ou até mesmo o livro nacional Santa Clara Poltergeist, do Fausto Fawcett, numa Copacabana futurista, sexual e decadente. Temos, desculpa o trocadilho, um tesão por essa realidade que caminha entre a marginalidade e o vulgar, com os perigos do sexo. Os desenhos de Frank Quitely (WE3) já apresentam todas as características pelas quais ele seria conhecido mais tarde, como os corpos magros e altos, os rostos enrugados e as roupas curtas. Inclusive há uma personagem que utiliza o que, em 2001, seria o uniforme da Emma Frost em sua passagem pelos X-Men. Seus desenhos, que sou bastante fã, também guardam semelhança com o trabalho do Moebius.
Mas voltando à trama, Alex é um velho que ganha um gás, um tesão de viver, mas ainda assim perigoso, pois além de contagiosa, a doença pode ser fatal. E nessa realidade, temos a polícia da Limpeza e Higienização, que joga um gás amarelo nas pessoas, colocando-as em quarentena e, mais tarde, numa ilha isolada. Do momento em que Alex está preso nessa ilha, que funciona como um campo de concentração, a história ganha vários questionamentos e profundidade. Temos sua antiga paixão, Zandra, que deseja morrer com ele ao melhor estilo Romeu e Julieta; uma espécie de pastor comunista, Bobby, que começa a fazer a cabeça dos contaminados, incitando uma rebelião e a tomada da cidade; as responsabilidades (e o medo) de se viver, de ver seus próximos morrerem; entre muitas outras. Claro, tudo num clima de revolução. Um ponto interessante é que a cidade é bastante tradicional, contrastando com a Muralha, que é uma construção mais estilizada, que parece ter sido inspirada no Futurismo lá de 1909. Sem contar a crítica social, a ideia de segregação, das castas, ricos e pobres separados. As pessoas limpas, organizadas e sadias dentro da Muralha, imunes e alienadas da realidade, dos pobres, sujos e doentes fora da Muralha.
Alex não quer morrer na ilha, não quer ser deixado pra trás, esquecido pela história. E mesmo sem ter aguentado a virada do milênio, a doença o impede de se suicidar, afinal de contas ele tá com um tesão de viver. E isso o levará até as últimas consequências, mesmo que signifique invadir a Muralha e apontar e esfregar seu dedo em toda pessoa privilegiada que ver pela frente. É um tema bastante complexo, que o Jamie Delano não tem muitos pudores de tratar. Impossível não relacionarmos às DSTs reais, que aniquilaram uma geração, como o HIV durante os anos 1980. A ideia do medo. Ou, como diria Cazuza, o meu prazer agora é risco de vida. E de como o Governo trata disso; mesmo não se tratando de uma DST, na história, propriamente dita. Não é uma história profética, muita coisa está longe da realidade e bebe do medo que muitos tinham, nos anos 1990, da chegada do ano 2000, do que a Terra se tornaria. E no texto de Delano, há um medo do politicamente correto que censura revistas pornográficas, a vinda da massa higienizada, além do velho medo do comunismo e do feminismo.
Fil Felix é autor, ilustrador e psicanalista. A Central dos Sonhos é seu universo particular, por onde aborda questões como memórias, desejos e infância. Fã de HQs, escreve seus comentários sobre quadrinhos desde 2011, totalizando mais de 600 reviews. Já escreveu sobre arte para diversos blogs como Os Imaginários e a coluna Asas da editora Caligo. Ilustrou os livros infantis Zumi Barreshti (2021, Palco das Letras) e Meu Avô Que Me Ensinou (Ases da Literatura), entre outras publicações.