Arcos Principais: Pouco Melhor Que Um Animal (Little Better Than a Beast).
Publicação Original/ Brasil: The Vision #7-12 (Marvel, 2016)/ Inédito.
Roteiro/ Arte: Tom King/ Gabriel Hernandez Walta.
Com o evento All New All Different, a Marvel zerou quase todas as suas séries e lançou diversas outras, entre elas a estranha O Visão (The Vision), fugindo do gênero super-herói e focando numa história mais lenta, sombria e ambientada num subúrbio americano. O primeiro volume (Pouco Pior Que Um Homem) mostrou o sintozoide Visão se mudando para uma nova casa, com sua nova família: a esposa Virgínia e os filhos Viv e Vin, todos também sintozoides criados por ele, na tentativa de ter uma vida normal. Mas as coisas não saíram como o planejado e o que seria uma releitura da eterna fábula do robô que quer ser humano se transforma num filme de terror. Esse segundo volume, que compreende as edições #7-12, fecha a série e mantém a mesma qualidade do primeiro, incluindo novos mistérios e material para a mitologia do personagem. Resta saber o quanto de tudo isso será aproveitado mais pra frente pela Marvel. Review especial em duas partes: a primeira sem spoiler e a última com spoiler, desse final.
POUCO MELHOR QUE UM ANIMAL
A história começa com uma espécie de resumão/ flashback da relação entre o Visão e a Feiticeira Escarlate, desde os primórdios nos Vingadores, passando pela intimidade dos dois, os filhos “falsos” que ela criou, a morte e substituição do programa dele até a separação. Apesar de aparecer diversos super-heróis, o tom da narrativa não é focado em lutas e muita ação, pelo contrário, é bem sombrio. E triste, muito triste. Você sente um clima pesado em todas as situações, fica na ansiedade de que a qualquer momento pode acontecer uma tragédia. Foi após esse término que a Wanda entregou pro Visão seu padrão cerebral, para que pudesse fazer algo bom com ele. E assim nasceram Virginia e as crianças, com a esperança do Visão em superar os eventos e ter uma vida comum.
No primeiro volume a Sra. Visão acabou matando o vilão Ceifador ao defender sua família, dando um sumiço no corpo e contando a ninguém. Mas um vizinho acabou filmando isso e passou a chantageá-la. Num momento de conflito entre os dois, o vizinho atira nela mas a bala chicoteia e mata o filho do homem. As coisas pra Virginia só é ladeira abaixo, mesmo contra sua vontade. Com todos os problemas, sua programação passa a pifar um pouco. E a situação só complica quando Victor Mancha, também um androide criado por Ultron, sendo o “irmão” do Visão e tio das crianças, chega pra passar um período com seus novos parentes. Algo aparentemente inofensível, mas que vira uma bola de neve quando Victor, na verdade, tem seus próprios segredos.
O roteirista Tom King fez um ótimo trabalho com quase todos os personagens, explorando suas características e recheando tudo com tantos detalhes interessantes que merecem destaque. Um deles é Vin, que ficou viciado em ideias de justiça e punição, recitando Shakespeare em todo canto. Daí que vem o título dos dois volumes, de uma citação de O Mercador de Veneza: “no seu melhor é um pouco pior que um homem, e no seu pior é um pouco melhor que um animal“. Viv tem sofrido a morte do garoto que ela gostava (e não sabe que a mãe tem envolvimento nisso). Ninguém da família precisa comer, mas ainda assim vão a um restaurante para “socializarem” numa das cenas mais interessantes, pagando por um jantar que sequer será servido. O Tio Victor, por outro lado, é um jovem viciado em Vibranium (o metal de Wakanda) e é o único com uma aparência mais humana. Já os Vingadores temem que o Visão enlouqueça e possa acabar com sua família e depois com o mundo, graças à uma visão da bruxa Agatha. Outro ponto legal é que King fez com o personagem algo semelhante ao que fizeram com a Wanda lá atrás, quando ela enlouqueceu ao saber da inexistência dos filhos e acabou com os Vingadores em A Queda, pra depois reestruturar a realidade e acabar com os mutantes em Dinastia M.
Claro que guardando as devidas proporções, já que o drama do Visão e sua família (e a tensão de que a qualquer momento as coisas realmente vão complicar) é mais conciso e menos megalomaníaco que da sua ex-esposa, além dos filhos existirem de verdade. As sequências finais são muito boas, com o desenrolar do segredo de Victor Mancha e a explosão dos conflitos familiares. A arte de Gabriel Walta com as cores de Jordie Bellaire (Cavaleiro da Lua) é excelente, com destaque para as expressões dos Visão, deixando toda a história num clima de tristeza e solidão, conseguindo se conectar ao leitor. A gente compra esse drama e sente cada perda. A Marvel não vem publicando mini-séries por achar que não atrai leitores, por algum motivo que ainda não entendi, mas fica evidente que essa série do Visão foi planejada desde sempre para ter 12 edições, ficando fechadinha, mas anunciada como uma série regular. Tom King saiu da editora e atualmente escreve a mensal do Batman (que foi de um primeiro arco legal pra um terceiro muito trash, perdendo a mão). Trata-se de uma das melhores séries dessa nova safra da editora, que poderia ser uma oportunidade da Marvel de abrir um selo com séries mais alternativas e independentes de sua cronologia (que anda uma bagunça de super-sagas).
A partir daqui tem spoilers! O final dessa maxi-série foi um pouco diferente do que imaginava. Virgínia continuou como uma das melhores criações, mas com um desenvolvimento menos alucinante que no primeiro volume. Enquanto nele ela estava entrando na bola de neve dos acontecimentos insanos, nesse aqui ela está tentando lidar com suas consequências, entrando em pane. A revelação de que Tio Victor trabalha para os Vingadores e foi enviado para investigar a família foi outro ponto bom, com destaque para o momento em que ele mata Vin numa sequência chocante. Ver o Visão segurando ele no colo e pedindo para que volte à vida, mesmo sabendo que está tão danificado que seria impossível reconfigurar, é tocante. E é a morte do menino que movimenta as edições finais, com os Vingadores colocando uma barreira em torno da casa, temendo que o androide se vingue do “irmão”, que foi preso. Outros momentos, como Viv rezando para que primeiro exista um Deus e, em segundo, que seu irmão possua uma alma, para assim pedir pelo conforto de sua morte, também são bem fortes e desenvolvidos. Enquanto isso o Visão roda diversos programas religiosos e filosóficos para compreender a situação, e percebe que em nenhum cenário é justo que seu filho esteja morto e o assassino dele esteja vivo. Assim ele consegue passar pela barreira, segue pro presídio, elimina todos os Vingadores e, quando vai matar Victor, Virgínia aparece e arranca seu coração. A esposa percebeu que a vida do marido seria arruinada e matou por ele, gravando uma confissão de tudo o que fez e depois se matando. Esses momentos finais poderiam ser mais tensos, como foi o início, mas acaba perdendo um pouquinho do brilho pela presença dos outros heróis, mas nada que atrapalhe a dimensão de todos os pontos positivos. Sem contar nas questões que a série levanta, como a noção de justiça da Virgínia e a decisão em se matar ou o quanto vale a vida humana e artificial. Um subtexto excelente.
Fil Felix é autor, ilustrador e psicanalista. A Central dos Sonhos é seu universo particular, por onde aborda questões como memórias, desejos e infância. Fã de HQs, escreve seus comentários sobre quadrinhos desde 2011, totalizando mais de 600 reviews. Já escreveu sobre arte para diversos blogs como Os Imaginários e a coluna Asas da editora Caligo. Ilustrou os livros infantis Zumi Barreshti (2021, Palco das Letras) e Meu Avô Que Me Ensinou (Ases da Literatura), entre outras publicações.