Arcos Principais: Pouco Pior Que Um Homem (Little Worse Than a Man).
Publicação Original/ Brasil: The Vision #1-6 (Marvel, 2015)/ Inédito.
Roteiro/ Arte: Tom King/ Gabriel Hernandez Walta.
Diferente da DC, que já “reiniciou” seu Universo duas vezes nos últimos 5 anos (com os Novos 52 em 2011 e agora em 2016 com Rebirth ou Renascimento), a Marvel costuma zerar suas séries através de grandes eventos, mas sem abdicar de sua cronologia. Em 2015, a editora terminou o mega evento Guerras Secretas, que culminou no relançamento de todas as suas séries, dando inicio a fase All New, All Different Marvel. O que importa destacar é que, ao contrário da DC que tenta manter toda sua mitologia de maneira mais conservadora (e isso não significa que vá ser ruim), a Marvel apostou numa nova perspectiva de seus personagens e na diversidade (e isso também não significa que vá ser bom). A Panini traduziu esta nova fase de Totalmente Nova, Totalmente Diferente Marvel e começará a publicar por aqui provavelmente no início de 2017.
Um dos títulos mais interessantes dessa nova fase é O Visão (The Vision), que foge de todos os clichês super-heroicos e até mesmo dos clichês envolvendo o vingador sintozóide Visão! Vem sendo aclamado pela mídia especializada e ganhando um “hype” da comunidade alternativa. Não é apenas a busca por sua humanidade, por se encaixar na sociedade e ser normal, mas a dificuldade que isso implica e na aceitação, mesmo que “inconsciente” (se pode aplicar este termo) que isso jamais aconteceria. A série é escrita por Tom King (The Omega Men) e mostra um Visão cansado de lutar, enfrentando sua própria consciência/ programação após sua morte em A Queda, sua volta ao mundo dos vivos, o término de seu casamento com a Feiticeira Escarlate e a perda dos filhos que nunca existiram…
Porém sua incansável busca por ser “normal”, por ser humano, continua. E Tom King pergunta: o que é mais humano que uma família? É assim que começa e do que se trata o primeiro volume da série, que compila as edições #1-6, intitulado Little Worse Than a Man (algo como “Pouco Pior Que um Homem”, em tradução livre). O Visão cria sua própria família: a partir das ondas cerebrais da ex-esposa, ele cria Virginia; unindo suas características e da nova noiva, cria os filhos gêmeos Viv e Vin. A nova família se muda para um bairro suburbano dos EUA na tentativa de terem uma vida de paz. Uma vida normal.
Matriculam os filhos na escola local. Recebem biscoitos dos vizinhos. Enfrentam a crise do desemprego. Enfim, a busca pelo famoso “american way of life“. Mas o que é ser normal? Quando o vilão Ceifador ataca a residência da família, na ausência do Visão, ferindo gravemente a filha Viv e partindo para Vin, Virginia sente a necessidade de proteger suas crias e comete o impensado: assassina o Ceifador. Isso dá início a uma série de catástrofes. Desde o que fazer com o corpo até outras mortes acidentais, problemas escolares, chantagens, mentiras e investigação policial.
Há muitos destaques nesse primeiro momento da série, sendo um deles o momento em que Visão sente-se obrigado a mentir, algo que vai contra toda a sua programação, mas que é necessário para manter e proteger sua família. O fato de todos serem máquinas é um agravante para os vizinhos e até mesmo o diretor da escola das crianças, que os identificam como “coisas”. E em todo momento ficamos com isso em mente. Até que ponto a família do Visão é real? Não há uma história de fundo explicando a origem, já começamos a leitura com a mudança de todos para a nova cidade.
A série deixa seu tom de drama da classe média para algo semelhante ao Serial Mom (Mamãe é de Morte) do John Waters. Mas sem o tom cômico. Virginia é uma excelente personagem, lidando com sua criação recente e as memórias implantadas, tentando ser uma boa mãe, esposa e vizinha. Mas até onde vai a sua página 2? Apesar de manter todas as habilidades do marido Visão, ela mesma não se intitula a “Sra. Visão”. Ela tem as suas próprias características.
As crianças também possuem bons papeis e, apesar de serem “androides”, enfrentam os mesmos problemas que os adolescentes humanos: Viv está descobrindo o que é amor através de um colega de classe que gosta dela; Vin quer saber até onde vai seu limite e rebeldia. A “família Visão” nasceu do Vingador na intenção de serem normais. Mas como conhecemos, não existem famílias normais. Todas tem seus podres, são descontroladas. A diferença é que umas são mais que as outras.
Os detalhes são muito interessantes e merecem comentários, como o fato de Visão e Virginia dormirem em camas separadas. Detalhes que mostram uma possível superficialidade nesse sonho do Visão em ser normal. Nas inconstâncias que a vida traz, já que nem tudo pode ser programado ou previsto. Ou resolvido logicamente. Esse é um dos grande pontos, quando este marido precisa resolver um problema de outro jeito que não o típico de seu sistema.
Recomendo a leitura deste primeiro volume, uma das histórias mais interessantes da Marvel recentemente, e que ainda possui a ótima arte de Gabriel Hernandez Walta (O Ladrão da Eternidade), que consegue dar os tons certos a cada cena, seja ela mais dramática ou não, mas sem fugir de sua ótima paleta de cores. Infelizmente, Tom King assinou um contrato de exclusividade com a DC (ele é o roteirista do ótimo Batman Rebirth, também) e encerrará a série na edição #12, que será lançada em dezembro deste ano. Ainda não se sabe se a Marvel continuará com outro roteirista ou finalizará a mensal de uma vez. Também não se sabe como a Panini irá publicá-la por aqui, se em encadernado ou em algum mix.
O final deste primeiro volume é no mínimo surpreendente. Ele tira o leitor do lugar comum e faz pensar. Acho que toda a série tenta, de um modo ou outro, levar a isso. Além de drama familiar e a fuga das missões super-heroicas, é uma história sobre existência. Quase filosófica. O que implica ser normal? Até que ponto vale tentar se encaixar? Isso é possível? São questões que o autor levanta, ainda sem respostas. Em época de Black Mirror’s, “O Visão” chega com mais uma proposta perturbadora de futuro, mostrando os possíveis limites entre homem e máquina, entre ética e moral. Pode ser que não agrade quem busque por ação e pancadaria ou que morra em sua 12ª edição, mas certamente irá levar o protagonista a outro patamar.
Review do segundo e último arco: Pouco Melhor Que Um Animal.
Fil Felix é autor, ilustrador e psicanalista. A Central dos Sonhos é seu universo particular, por onde aborda questões como memórias, desejos e infância. Fã de HQs, escreve seus comentários sobre quadrinhos desde 2011, totalizando mais de 600 reviews. Já escreveu sobre arte para diversos blogs como Os Imaginários e a coluna Asas da editora Caligo. Ilustrou os livros infantis Zumi Barreshti (2021, Palco das Letras) e Meu Avô Que Me Ensinou (Ases da Literatura), entre outras publicações.