Arcos Principais: Sem título.
Publicação Original: Fallen Angels #1-6 (Marvel, 2020)
Roteiro/ Arte: Bryan Edward Hill/ Szymon Kudranski e Frank D’Armata.
Após os eventos de Dinastia X/ Potências de X, quando Charles Xavier anunciou ao mundo a nova ilha nação mutante Krakoa, a Marvel reformulou todas as revistas X. O carro chefe continuou sendo a X-Men, com roteiro do próprio Jonathan Hickman (e que já fiz o review do primeiro arco aqui!), enquanto as demais revistas abordam outros núcleos de personagens. Anjos Caídos (Fallen Angels no original) durou apenas 6 edições, trazendo um arco fechado focado na Kwannon e sua dificuldade em lidar com a nova realidade, agora com seu corpo de volta. Apesar das inúmeras críticas negativas que a série ganhou, já adianto aqui: eu gostei muito de como o autor abordou várias questões de dualidade (que super combinam com a problemática Kwannon x Psylocke). Review especial com spoilers!
BETSY BRADDOCK E KWANNON: A TROCA DE CORPOS
A história entre a Kwannon e a Psylocke (Elizabeth Braddock) é bastante intrincada e, no decorrer dos anos, foi ficando cada vez mais confusa essa coisa de uma ocupando o corpo da outra. Mas entender a ligação básica entre as duas é essencial para avançar na leitura, já que muito do roteiro é construído em cima de dualidades. Mas resumindo: Betsy Braddock já era uma X-Men quando ficou gravemente ferida e, sem memórias, foi parar numa ilha perto da China, sendo resgatada e sofrendo lavagem cerebral nas mãos do Tentáculo, que visava criar uma nova ninja com poderes telepáticos. Em contrapartida, Kwannon era uma das melhores ninjas assassinas do grupo, sendo também mutante e com certo poder de empatia. Em algum momento, líderes do Tentáculo pediram a ajuda da Espiral e sua Loja de Corpos para que colocasse uma no corpo da outra, aproveitando ao máximo o poder de cada uma. E eis que foi dada a largada para uma série de confusões.
Primeiro que a Espiral combinou o DNA das duas, gerando situações questionáveis. A primeira: Betsy, sendo branca e britânica, passou a habitar o corpo de Kwannon, uma mulher japonesa, e adotou o nome de Psylocke; e ninguém se deu conta da diferença! Kwannon, no corpo de Betsy, adotou o nome de Revanche e, anos depois, foi morta em decorrência do vírus Legado. Apesar da gente deduzir que a mente de Kwannon também morreu, isso nunca foi explicado de forma convincente. Em algumas histórias, até mesmo a troca de corpos foi descrita de outras maneiras, assim como negada em certos momentos. Fato é que Betsy (no corpo da Kwannon e como Psylocke) fez muito sucesso e continuou assim pelas últimas 3 décadas. Bom, até 2019 na minissérie A Caçada pelo Wolverine: Mistério em Madripoor, quando a mente de Betsy retornou ao seu corpo original e Kwannon é revivida, também retornando ao seu; marcando a “destroca“. Ou seja, agora temos Betsy de volta ao corpo europeu e adotando o nome de Capitã Britânia, enquanto Kwannon retorna dos mortos em seu corpo verdadeiro. Mas ao contrário da Betsy, Kwannon ficou fora desse mundo por muito tempo e agora tem dificuldades de se adaptar.
A RESSURREIÇÃO E A REDENÇÃO DE KWANNON
A primeira edição apresenta ao leitor o novo status quo de Kwannon, de volta ao seu corpo original e a decisão de continuar adotando o codinome de “Psylocke“. E devido seu histórico assassino e seu envolvimento com o Tentáculo, ela sente que não pertence à Krakoa, o paraíso criado pelo Xavier. O roteiro é do Bryan Edward Hill, que tem no histórico um vasto envolvimento com séries mais independentes em editoras como a BOOM! e a Image. Ele tenta resgatar um pouco da origem da personagem, de como foi criada e torturada pelo Tentáculo, que chegou a matar seu namorado e sumir com sua filha. Em paralelo, Kwannon recebe um aviso em formato de visão, sendo alertada de uma nova entidade chamada Apoth, que se diz um deus e está relacionado com a nova droga tecnológica Overclock.
Magneto nega oficialmente a Kwannon o direito de sair da ilha, mas por baixo dos panos sugere que ela peça ajuda ao Senhor Sinistro, que acaba encorajando-a a procurar por Apoth. E para ajudá-la na missão, ela convoca outra figura que parece não se encaixar na ilha: a X-23. A HQ começa super violenta e sem tempo irmão. Mas um dos pontos altos da trama do Bryan Hill está no subtexto, em como ele conecta e trabalha com diversas simbologias. Os desenhos são de Szymon Kudranski (Spawn), que estranhei muito o rosto dos personagens em diversos momentos, a Psylocke está bem diferente do que estamos acostumados a ver, mas o trabalho de cores (e acredito que dos efeitos também) são do Frank D’Armata (Invencível Homem de Ferro), que deixou toda a trama bastante frenética, psicodélica e obscura ao mesmo tempo.
A arte, inclusive, é um dos pontos que muitos fãs criticaram a HQ, principalmente por não manter uma concisão de traço. Confesso que tive um estranhamento em alguns momentos, mas achei que ela combinou com o roteiro e soube trabalhar bem algumas estruturas. O Senhor Sinistro e o Magneto, por exemplo, são duas figuras que surgem de maneira enigmática, sempre com o rosto pela metade ou nas sombras, como se estivessem escondendo algo. Há também uma diferença entre as cenas que ocorrem no presente e as cenas que mostram o passado da Kwannon, seu treinamento nas mãos do Tentáculo. E por falar nos ninjas e também retomando a questão do subtexto, que foi o que mais me chamou a atenção, temos em cada edição um referência à honra dos samurais ou ao código dos ninjas, trazendo a ideia de clemência e misericórdia. Além, claro, do símbolo máximo da Psylocke/ Kwannon: a borboleta.
Mais que um símbolo de metamorfose, Hill trabalha com essa ideia desde a lagarta, que é feia e frágil, precisando se envolver na delicadeza da seda para enfrentar seus próprio demônios e dificuldades, chegando o momento que pode bater asas e voar. E por mais que a ninja não queira se relacionar ao símbolo da borboleta, ela está lá para lembrá-la do que passou pela vida, de toda a superação e esforço envolvido nisso. Assim como ela tem conhecimento de que não é uma heroína, mas serviu de receptáculo da Betsy por tanto tempo que agora deseja aprender a ter bondade.
Isso torna Anjos Caídos uma história menos comum dos X-Men. O jovem Cable é outro mutante que se une à jornada de Kwannon em busca do Apoth e, por mais que no final a Escalpo e a Bling! apareçam para ajudar, toda a série é basicamente protagonizada por Kwannon, X-23, Clable e o Sinistro, indo na contramão das histórias com 10 heróis num mesmo time. E por falar de Apoth, ele é uma espécie de consciência tecnológica que cria super máquinas e utiliza de crianças como meio de produção e comunicação, graças ao Overclock (um aparelho que conecta na cabeça e expande a mente de quem o usa, como uma droga). Cable descobre que Apoth vem escravizando crianças no Brasil e convence Kwannon a interromper a busca imediata para poder salvá-las, explorando o lado heroico da ninja.
Vale comentar que a origem de Apoth é meio nebulosa: ele era algo que a Kwannon deveria ter matado no passado, mas que não o fez. E como uma consciência tecnológica, Apoth se preencheu de conhecimento e ficou obcecado pela Bíblia e o ideal de Deus, se tornando uma figura mitológica que ao mesmo tempo é deus, mas também o dilúvio, o criador e o destruidor. As discussões que temos aqui são interessantíssimas, principalmente quando Apoth comenta questões como discursos de liberdade que escondem ditaduras, desejos de paz que escondem a guerra, sem contar toda a simbologia bíblica. Num dado momento, a própria Kwannon lembra que os anjos eram guerreiros que possuíam espadas de fogo.
Com a ajuda do Sinistro, a Kwannon chega a usar o Overclock e entrar no cybermundo, descobrindo o paradeiro de Apoth. Tudo numa pegada meio Matrix e Blade de ser. E apesar de não se importar com os humanos, Magneto reconhece a nobreza da parte de Kwannon e os ajudam a chegar em Dubai, o edifício-templo onde Apoth se encontra. E enquanto X-23, Cable, Bling! e Escalpo tentam não lutar contra um exército de crianças, Kwannon enfrenta Apoth cara a cara. Ela, literalmente, cria asas e voa em direção ao edifício. Tudo é muito literal e ao mesmo tempo poético, já que Apoth muda de forma e ela acaba lutando contra si mesma, seu mestre, seu amado e sua filha. Apoth funciona como um espelho e, nesse contexto, o maior inimigo de Kwannon é ela mesma. Com o fim de Apoth, a figura da visão da ninja reaparece, revelando ser a contraparte do vilão, porque tudo tem seus dois lados, assim como todo Deus precisa ter seu adversário. E ao ser indagado do porquê ele não combateu Apoth, a figura responde que combateu, sim: enviando ela em combate.
Apesar dos desenhos serem bastante inconsistentes (a Kwannon tem vários rostos), da batalha terminar abruptamente e de algumas confusões, tanto da origem de Apoth quanto da própria troca de corpos entre Kwannon e Betsy (num momento deixa a entender que a mente de Kwannon estava dividindo o corpo com a Betsy, mas como?), toda a simbologia que a história trouxe é muito boa e demonstra certa atenção por parte do roteirista. A mensagem por detrás de tudo isso é ótima. Kwannon perdoa Betsy e decide por deixar Krakoa, agora sabendo que pode ser boa. Sinistro é outra grata surpresa, um vilão que gosto muito e que aqui tem papel fundamental, principalmente ao trazer suas ideologias genéticas. Temos até referências ao Mágico de Oz, quando ele diz não poder dar um coração a um homem de lata ou cérebro a um espantalho; ele não faz milagres. Enfim, uma HQ que gostei muito da leitura, das referências e da beleza poética presente em vários momentos, da delicadeza na simbologia da borboleta e da seda à dualidade clássica bíblica entre o bem e o mal, da redenção e ressurreição.
Fil Felix é ilustrador e escritor. Criador dos conceitos e personagens do universo da Central dos Sonhos. Fã de HQs, gosta de escrever reviews desde 2011, totalizando mais de 600 delas em 2023. Já escreveu sobre arte para diversos blogs como Os Imaginários e a Coluna Asas da editora Caligo. Ilustrou seu primeiro livro infantil em 2021: Zumi Barreshti, da editora Palco das Letras.