Arcos Principais: Mini-série.
Publicação Original/ Brasil: Enigma #1-8 (Vertigo, 1993)/ Enigma #1-2 (Atitude, 1999 – Incompleta).
Roteiro/ Arte: Peter Milligan/ Duncan Fegredo.
O selo Vertigo da DC surgiu em 1993 no intuito de sair da limitação que os quadrinhos tradicionais sofriam, pra poder apresentar trabalhos mais realistas e tratar de questões antes consideradas tabus, como homossexualidade, violência explícita, drogas, nudez e outros temas pouco explorados. Muitas séries da DC migraram para o selo, como foi o caso de Shade, o Homem Mutável, Sandman, Homem-Animal e outros, cujas temáticas já vinham ganhando um tom mais “adulto” e ficaram maios livres com o selo. De material inédito, a série em 8 edição Enigma foi uma das primeiras a sair, ainda em 1993. Escrita pelo Peter Milligan (que já escrevia o Shade na época) e com desenhos do Duncan Fegredo (Kid Eternidade), é uma mini que condensa muito do espírito que a Vertigo queria ter (e teve) naquele momento. Com uma história envolvente e repleta de interpretações, é um material de primeira que nunca foi finalizado no Brasil. Review sem spoilers e, depois da nota, com spoilers!
ENIGMA
Na história de Enigma, um lagarto desencadeia inúmeras situações bizarras numa cidade. Uma criatura deformada, conhecida por Cabeça, começa a atacar e sugar o cérebro das pessoas, gerando pânico. Uma de suas vítimas é Michael Smith, um jovem programático e sistemático, que acaba sendo atacado pela Cabeça, enquanto um mascarado surge para tentar salvá-lo, em vão. Michael entra em coma e ninguém tem esperança que vá sobreviver, pelo contrário, o medico incentiva o desligamento das máquinas. Porém, como um milagre, ele volta à vida. E bastante mudado. É nesse ponto, ainda no início da mini, que os demais acontecimentos vão se desenrolando, como outros vilões surgindo na cidade: a Verdade, que leva as pessoas à loucura; a Liga Interior, três assassinos que reorganizam a casa de suas vítimas, antes da matança; e a Garota Envelope, uma ex-modelo que “engole” as pessoas em seu casaco/ barriga, as “envelopando” e enviando pra outro lugar. O mascarado se autodenomina Enigma e passa a combater esses vilões.
Michael percebe alguns padrões nos acontecimentos e recorda que, quando criança, lia uma HQ chamada “Enigma”. Pegando os gibis velhos, descobre que, além do mascarado-protagonista, tanto o Cabeça, quanto a Verdade e a Garota também são personagens da história. A HQ tomou vida ou são loucos disfarçados? A mídia e o público passam a investigar os casos, fanáticos surgem por todo o país, os chamados “enigmáticos“, que acreditam numa força maior. E Michael, que adorava o quadrinho quando criança e acredita que sua pessoa possui alguma influência em tudo isso, inicia sua busca pelo autor, Titus Bird, pelo Enigma e por si mesmo. A narrativa é recheada de metalinguagem, algo que o Peter Milligan adora, principalmente da história em quadrinho dentro da história em quadrinho. Além de trazer todos os pontos que ajudaram a fundar a Vertigo, como violência explícita nos assassinatos e suicídios, também traz a questão da sexualidade. Michael é hetero, namora com a Sandra, mas desde que acordou do coma se sente “diferente”. E Titus Bird é gay e se sente atraído por ele, mas não é recíproco. Assim, toda a história também pode ser vista como uma grande viagem de descoberta e redescoberta sexual.
Os vilões que surgem, que são grandes arquétipos, são sensacionais. A Cabeça é um ser extremamente bizarro que suga o cérebro das pessoas com um canudinho. A Verdade é enlouquecida e com ares de grandeza, recheada de metáforas, como quando invade uma Igreja. “A Verdade está matando pessoas na Igreja“. Há um subtexto muito bom, como de costume nos trabalhos do Milligan. A Garota Envelope, por outro lado, possui um dos poderes e visuais mais interessantes que pude ver recentemente. Quer dizer, você ser envelopado e surgir numa caixa do Correio em outro lugar? É genial. A Liga Interior me lembra dos Club Kids, que fizeram sucesso nos anos 1990, que usavam roupas extravagantes e questionavam questões de gênero. A arte de Duncan Fegredo é bastante peculiar, de um jeito bom. As cenas são caóticas, com muitos traçados e rabiscos pulando das páginas, você chega a se perguntar como ele desenha aquilo. As cores são de Sherilyn Van Valkenburgh (Os Livros da Magia), que dão um charme a mais e se destacam pelo jogo de iluminação, excelentes. Vale comentar que a arte pode ser um fator negativo pra alguns, por ser exagerada, inclusive com momentos difíceis de entender.
“Enigma” possui diversas qualidades, dos personagens interessantes e críveis ao ambiente em que surge. Michael sai do cara sistemático, que só transava às terças-feiras, pra alguém que passa uma semana viajando, em busca da verdade, sem nem tomar banho e transando com a primeira que lhe dá bola. Quebrando toda sua rotina, colocando seu mundo de cabeça pra baixo. Até mesmo Titus Bird faz o artista frustrado, que se sente culpado por suas criações terem ocasionado tantas mortes. O próprio Enigma é um enigma, desculpa o trocadilho. Ele usa uma máscara e se coloca como um ser misterioso até o momento em que vemos seu real rosto, em que conhecemos sua história e descobrimos tudo por detrás da mini. Chegando ao final, que é um tanto cômico. Peter Milligan faz uma apanhado geral na última edição, mostrando que sempre esteve por dentro do que se passava na história, justificando qualquer situação que possa parecer um “Deus Ex Machina“, porém fica um pouco didático de mais, explicando algo que poderia ter ficado no ar. O que não estraga a HQ, claro. Enigma é uma excelente mini em 8 partes, com roteiro afiado, abrindo espaço pra diversas interpretações, principalmente no campo do inconsciente, dos desejos reprimidos, que é um dos pontos que torno o autor um dos meus preferidos. Com uma temática bastante atual, apesar de fantástica, que é a auto-descoberta e as consequências de nossas atitudes. E com uma arte e personagens, principalmente os vilões, muito carismáticos, além das capas, padronizadas com um “selo” ao meio. Infelizmente ela não foi finalizada no Brasil, sendo publicada pela metade em 1999 e, desde então, nunca mais apareceu por aqui. Felizmente, há tradução de fãs na internet.
Agora com spoilers! A grande questão de Enigma, apesar de toda a parafernália alegórica, cai sobre a sexualidade de Michael Smith. E aqui entra um ponto bastante delicado da obra e aberto a vários debates. O primeiro deles é que o Enigma, uma espécie de “mutante”, ao sair de seu cativeiro e encontrar Michael (dando vida às histórias do gibi e tomando a forma do herói protagonista) transforma ele em gay. Ou seja, não é bem uma “descoberta sexual”. Por outro lado, ao experimentar novas sensações e, inclusive, dormir com o Enigma, Michael escolhe continuar com esta orientação. O fato dele ter sido “transformado” faz com que toda a jornada fique menos “pesada”, porém a escolha por se manter eleva a narrativa pra outros cantos. De um jeito ou de outro, só por nos fazer refletir sobre o assunto, já a torna um material excelente. Ainda mais hoje, quase 25 anos após sua publicação, onde os debates em torno de sexualidade e gênero estão mais fortes que nunca. O final é exagerado e nonsense, salvo pelo teor absurdo de toda a trama. Mesmo realista, a gente entra na magia do absurdo e vê tudo como grandes alegorias da nossa realidade.
Fil Felix é autor, ilustrador e psicanalista. A Central dos Sonhos é seu universo particular, por onde aborda questões como memórias, desejos e infância. Fã de HQs, escreve seus comentários sobre quadrinhos desde 2011, totalizando mais de 600 reviews. Já escreveu sobre arte para diversos blogs como Os Imaginários e a coluna Asas da editora Caligo. Ilustrou os livros infantis Zumi Barreshti (2021, Palco das Letras) e Meu Avô Que Me Ensinou (Ases da Literatura), entre outras publicações.