Arcos Principais: One shot.
Publicação Original/ Brasil: Cornücópia (Independente, 2015).
Roteiro/ Arte: BRÄO.
Cornücópia é uma HQ independente escrita e desenhada por BRÄO, publicada através do Catarse em 2015, repleta de detalhes eróticos que pedem ao leitor que se entregue aos próprios prazeres. São cerca de 60 páginas em preto e branco, quase sem diálogos e utilizando apenas um cenário, mas trazendo uma riqueza tanto estética quanto de narrativa muito grande, deixando o leitor imerso nesse universo de sensações, fantasias e desejos proposto pelo autor. É um trabalho que pega inspiração no clássico mercado europeu de quadrinhos eróticos, em autores como Milo Manara (Bórgia) e Guido Krepax (Valentina), além do estilo carregado de linhas do Moebius (Arzach). Um review especial sem spoilers desse belíssimo álbum +18!
Não há, propriamente dito, uma história em Cornücópia. Há uma passagem. Praticamente toda a narrativa acontece numa sala, onde há um trono. Esse é o foco de toda a “ação”. Uma mulher, que pode ser tanto uma Imperatriz quanto uma Dominatrix ou a sua vizinha Dona de Casa, interpreta uma personagem mergulhada em sentir e dar prazer. Ao sentar no trono, passam por ela as mais diversas personagens, homens e mulheres, dos mais variados gêneros e acessórios. É uma personagem ambígua porque talvez seja essa a intenção de BRÄO: ela pode ser qualquer um; pode ser eu, pode ser você. Essa proximidade com o leitor faz a experiência ser mais… íntima. Em paralelo às cenas da “sala”, temos uma mulher se trocando, mostrada em quadros pequenos e soltos nas páginas. É o contraste entre a preparação e o ato.
BRÄO tem um traço bastante característico e exuberante. Antes de Cornücópia ele já havia publicado através do Catarse o livro de sketches de mulheres Bad Wömen e recentemente também conseguiu a campanha para o volume 2. No universo dos quadrinhos, teve participação em coletâneas e também atua como professor de desenho na Quanta Academia, sendo este álbum seu primeiro grande quadrinho. Além do preto e do branco, ele usa muitas hachuras e se atenta aos mínimos detalhes, desde o reflexo do salto alto no piso até a saliva, dedos, texturas e tudo o mais. Não há muita diagramação ou quadros, quase tudo é de página inteira. Muito do imaginário BDSM (se não sabe o que é, dê uma procurada antes de conhecer a HQ) está presente: roupas de couro, coleiras e focinheiras, látex, meia-calça arrastão, saltos enormes e finos, correntes, cintos, luvas, fantasias e até mesmo a incrível roupa de “rubberman” fazem uma ponta, e claro, o voyeurismo. Todo o figurino da história é incrível, sem contar nos chifres, que é um dos principais itens desta “passagem” e o símbolo da força, do poder e do domínio, enquanto a cornucópia simboliza a fartura e abundância.
Mas ainda estamos falando de um quadrinho erótico: há muito sexo. E dos mais variados tipos, sem nenhum tipo de pudor. Homens e mulheres se entregando ao prazer. E, claro, com desenhos sem o menor pudor também: determinadas cenas chegam a impressionar pelo nível de detalhes, como num momento em que vemos todos os orifícios da personagem, as carícias certeiras ou a masturbação molhada. BRÄO certamente gosta muito da figura feminina, mas também não deixou de lado as figuras masculinas, tanto uma quanto outra são muito bonitas e sensuais. O final é sensacional e amarra toda a narrativa, cria um link entre obra e leitor, mas sem usar dos clichês de quebra da “quarta parede”.
Por ser uma HQ independente, Cornücópia talvez seja um pouco difícil de encontrar e seu acabamento em formato de luxo acaba elevando um pouco o preço, mas ela está disponível para leitura online na plataforma Social Comics, que é a “Netflix dos Quadrinhos“, na qual indico a leitura! É uma HQ visual e sensorial: belíssima do início ao fim, despertando (e exibindo) os mais variados fetiches e desejos em todos que passam pela “sala”. A falta de diálogos ou de grandes desdobramentos impedem que a narrativa fique cansada e cheia de coisas que as vezes mais complicam que facilitam. Aqui o menos realmente é mais (e olha que eu prefiro coisas bem psicodélicas), focando no que importa: o luxo e a exuberância de se entregar. Nos trazendo algo que geralmente está longe de nós, pobres mortais.
Fil Felix é ilustrador e escritor. Criador dos conceitos e personagens do universo da Central dos Sonhos. Fã de HQs, gosta de escrever reviews desde 2011, totalizando mais de 600 delas em 2023. Já escreveu sobre arte para diversos blogs como Os Imaginários e a Coluna Asas da editora Caligo. Ilustrou seu primeiro livro infantil em 2021: Zumi Barreshti, da editora Palco das Letras.