Segundo volume (de três) da fase Grant Morrison na série Homem-Animal, que desenterrou um personagem de terceiro escalão, o repaginou e ajudou a construir as bases do selo Vertigo da DC, destinado à um público mais adulto. No review do Vol. 1 – O Evangelho do Coiote, já falei bastante sobre o autor e sobre a origem da série, dá uma passadinha lá pra relembrar! Como havia comentado antes, esse início de carreira do Homem-Animal não é totalmente Vertigo, passeando ainda pelo Universo DC, começando a tomar a forma de um personagem que não é um super-herói tradicional e está fora dos clichês do gênero.
Assim como Shade, o Homem Mutável, eu possuía muita expectativa com essa série, principalmente por toda sua fama e temas voltados à causa animal, já que sou vegetariano. Confesso que, ao mesmo tempo em que essas histórias são muito boas, as demais me frustraram um pouco. Morrison cria ótimos cenários e possui uma metalinguagem incrível, mas o fato da série ainda estar atrelada ao Universo DC, sinto uma freada brusca em muitas coisas.
Nesse volume, temos uma edição de Origem Secreta, uma introdução às origens dos poderes do Homem-Animal, que é tratada nas histórias seguintes. Não sou um especialista no Universo DC e as suas Crises (que reformularam as realidades) são um problema pra mim. Grant Morrison cria um conflito entre Buddy Baker pré e pós-Crise nas Infinitas Terras que se estende por algumas histórias, deixando um ar de “o que está acontecendo por aqui” na maior parte do tempo. Superficialmente, entendemos a questão de realidades paralelas e dos alienígenas que as manipulam, mas (mais uma vez) faltou uma contextualização da Panini (nem que seja como Nota do Tradutor) de dar uma pincelada em que Crise é essa que estão falando.
E esse é o ponto que me incomoda na série: há muita coisa interessante, porém que se perde em meio à essa confusão do UDC. Como exemplo da maturidade com que Morrison trata a série, Buddy está na África e, ao lado de Víxen (que também possui poderes animais), se veem em meio ao fogo cruzado do Apartheid, o regime de segregação racial que ocorreu na África do Sul. Há violência, sangue, preconceito, temas pouco usuais em histórias de heróis. Ao mesmo tempo em que temos o retorno do Fera Buana, que se aposenta e entrega seu manto à um homem negro, que passa a se denominar Fera Liberdade. Esse contexto histórico e delicado mostra a competência do autor, além de dar umas cutucadas no leitor.
Porém, esse plano de fundo é ofuscado pelos alienígenas manipulando a realidade e um vilão primata albino, Hamed Ali, que é imortal, super caricato e quer dominar o mundo. Num momento, Víxen tira uma bomba não sei de onde e explode uma instalação. Num outro, há um robô-réptil gigante. Muita coisa absurda e caricata que tira o fôlego das histórias.
Da metade do volume pra frente, o Homem-Animal passa a se envolver cada vez mais com as causas animais, tocando em assuntos polêmicos e, inclusive, ficando em cima do muro. Temos Buddy sabotando caças à golfinhos e raposas, discutindo sobre vegetarianismo e aquecimento global. Em algumas situações, chega a ser panfletário e extremamente didático, mas não prejudica o todo. O interessante é ver como Morrison tenta levar isso ao público, nem que precise chocar: as cenas de caçadores perfurando golfinhos, ou retirando seus fetos são realmente impressionantes, ou quando mostra macacos de laboratório com os olhos costurados.
E apesar de panfletário, temos o outro lado da moeda, pra tentar combater esses ideais, deixando a história mais realista: num desses resgates, bombeiros se ferem, abrindo um novo questionamento, sobre pessoas inocentes sendo prejudicadas por essas ações. Gosto muito de como Morrison tratou disso, mas temos, mais uma vez, o caricato invadindo as histórias. Nesse caso, a Liga da Justiça Europa, com Homem Elástico e cia. A presença deles é totalmente desnecessária.
Homem-Animal: a Origem das Espécies caminha por histórias boas, que trata de temas polêmicos como o Apartheid e causas animais, com uma metalinguagem afiada, seja nos trocadilhos com as histórias em quadrinhos, seja nas críticas aos super-heróis, mas que quando parece que vai engatar, dá uma freada brusca, principalmente por ainda estar no Universo DC, com vilões caricatos, heróis desnecessários e toda a parafernália do gênero.
A arte também caminha sobre esse muro: em alguns momentos é incrível, como quando o vilão dos espelhos “quebra a realidade” ou Buddy se auto-multiplicando através das características das bactérias em seu corpo (momento “?” da edição), mas é uma arte bastante oitentista, algumas cenas não envelheceram bem. Mas, de maneira geral, ela é boa e entrega algumas sequências bem inovadoras, as expressões também merecem destaque. O próximo volume é o último com Morrison nos roteiros, fica a expectativa.
Fil Felix é autor, ilustrador e psicanalista. A Central dos Sonhos é seu universo particular, por onde aborda questões como memórias, desejos e infância. Fã de HQs, escreve seus comentários sobre quadrinhos desde 2011, totalizando mais de 600 reviews. Já escreveu sobre arte para diversos blogs como Os Imaginários e a coluna Asas da editora Caligo. Ilustrou os livros infantis Zumi Barreshti (2021, Palco das Letras) e Meu Avô Que Me Ensinou (Ases da Literatura), entre outras publicações.