[Conto] A Era de Aquário!

#Este conto faz parte da Central dos Sonhos. Para conhecer o projeto leia Bem-Vindo à Central dos Sonhos. E para entender a Pandora leia Pandora: a Droga Onírica.

6 A Era de Aquario (Set-Out-2014) - Fil Felix colagem

São três horas da madrugada, Mikhail revira na cama, de um lado ao outro, com o suor escorregando pela testa. Com as mãos, agarra forte o cobertor. Seria um pesadelo? Mais um? De supetão, desperta, assustado. A visão está turva, um zunido como de um pernilongo penetra seus tímpanos. Ele observa o despertador de cabeceira, senta na cama, com as mãos na cabeça, como um perdedor.

Mais uma noite de sono perdido. Um mundo inteiro passa por sua mente, lembranças do dia anterior, expectativas do que ainda virá. Aos poucos fica de pé, a visão ainda embaçada, zonzo como se estivesse de ressaca. Se dirige à pequena cozinha do apartamento, tira um copo de vidro do armário, o enche de água, da torneira mesmo. Procura no balcão, tateando sobre a meia luz da lua, por uma caixa de remédio. Há dois dias que vem se auto-medicando para dormir.

A sacada, de porta aberta, cortinas ao vento, apresenta um céu estranhamente colorido, chamando a atenção de Mikhail, que corre para ver o estranho acontecimento. Sobre as nuvens, uma aurora boreal metropolitana e de cores vibrantes dispara, vez e outra, explosões cítricas.

O rosto de Mikhail é iluminado pelo festejo, seu roupão é balançado pelo vento. Uma brisa suave toca sua pele, ainda adormecida, com os pelos arrepiados. Sua atenção, mais uma vez, é puxada para um murmúrio vindo lá de baixo, da praça do condomínio. Ele observa e se surpreende ao ver um pequeno grupo de pessoas reunidas, aparentemente lideradas por Rodrigo, o filho do síndico. Ele reconheceu sua figura através das roupas largas, coloridas, mesmo observando-o do décimo andar.

Em sua cabeça, se pergunta o que essas pessoas estariam fazendo ali. E o mais curioso, a praça nunca lhe pareceu tão próxima. Tão nítida. Mikail segura forte no batente de sua sacada, um surto de curiosidade sufoca seu coração. Durante seus 30 anos de vida, nunca presenciou algo de tamanha estranheza. Na verdade, sua vida inteira fora preenchida de banalidades. Desde a infância à adolescência, nunca fez algo de surpreendente, não era o melhor nem o pior de sua turma. Sua presença facilmente passava despercebida, por mais que fosse até agradável aos olhos, uma influência rústica de seus antepassados. Não se uniu ao rock dos anos 90, muito menos criou expectativas com a virada do século.

Começou a trabalhar ainda na adolescência, numa empresa pequena, sem perspectiva de crescimento profissional, fechado num mundo composto por números e rotina. Ao qual pertence até hoje, sufocado em seu apartamento. Mas as luzes no céu e o grupo reunido lá em baixo, brotaram nele uma emoção que talvez nunca experimentou. Uma curiosidade desenfreada. Será que poderia presenciar o espetáculo mais de perto? Será que deveria descer? Rodrigo, pelo qual nutria uma amizade superficial, dessas de encontros e desencontros na portaria, permitiria sua entrada no estranho conjunto? Pela primeira vez em seu coração, ele sentiu que valeria a tentativa.

Segurou forte no batente da sacada uma vez mais, decidido a descer.

***

Rodrigo lidera um pequeno grupo de pessoas que, assim como ele, aguardaram por este momento único, o mais importante de suas respectivas existências. Um sinal, diretamente dos céus, que a chegada está próxima. Brandando um megafone, ele dá início a um caloroso discurso:

– Atenção, atenção! É chegado o grande momento, irmãos! A era do amor, do conhecimento existencial, da verdadeira liberdade… É chegada a Era de Aquário!

As pessoas que o acompanham se exaltam. As mulheres, quase todas de vestidos floridos e estampas indianas, abraçam umas às outras. Os homens, igualmente coloridos, fazem os mesmo. O grupo inteiro se une numa consagração ao amor. E, logo em seguida, sentam-se no chão para escutar um pouco mais das saudações de Rodrigo:

– Os Deuses de Aquário estão chegando em seus discos voadores! Observem as luzes! – Mikhail finalmente chegara ao térreo, se juntando ao grupo, sendo recebido de braços abertos, mas ainda zonzo e de roupão. – Eles falaram comigo! Disseram que amam a todos nós, que estão trazendo o segredo da vida, que ensinarão tudo que queremos aprender! – Sua feição, de uma incrível felicidade, era o suficiente para abraçar seu rebanho.

Mikhail toca no ombro de uma moça, lhe pergunta o que está acontecendo. Ela, trazendo no rosto a mesma expressão de felicidade de Rodrigo, responde calmamente. “Chegou a hora que todos estavam esperando, a comunicação com os antigos deuses foi selada. O mundo como o conhecemos irá acabar, chegará uma era de paz, de libertação de corpo e alma. Eles vão abrir nossa mente e coração, tirarão nossas vendas. Nos unirá à natureza, acabará com o sofrimento animal, com o ódio e ignorância humanos. Eles estão vindo, olhe!”.

Mal dá tempo de Mikhail absorver as informações e ocorre outra explosão cítrica no céu. Todos olham pra cima, admirados. As nuvens cintilam, brilhando com todo o espectro do arco-íris. Uma aurora boreal percorre suas cabeças. Uma eterna psicodelia, refletida na face daqueles que a observam. A adrenalina no corpo de Mikhail o impede de refletir, perdendo a noção de tempo e espaço. Onde estão os outros condôminos? Os moradores das casas vizinhas? Até mesmo o porteiro, onde está? Perguntas que faria em sua vida banal, mas que agora se encontravam desnecessárias. Pois também foi contagiado pela Luz.

Um clarão circular paira no céu, com estranhos pontos em sua borda, também brilhantes. Seria a nave-mãe dos Deuses? “Chegaram, eles chegaram!”, grita Rodrigo, o único ainda de pé. O OVNI dispara um feixe de luz branca, que percorre o grupo. “Vejam, os Deuses estão a procurar um de nós…, abram a mente, deixem que lhe penetrem o inconsciente!”.

O feixe frenético ilumina um a um, deixando o grupo num êxtase surreal, banhando-se em alegria. Aos poucos, cada integrante se despe, retirando as camisas, as saias e calças. Uma diversidade racial, de cores e primaveras, de desejos e esperanças. O feixe paira sobre Mikhail. “Vejam, irmãos, os Deuses fizeram sua escolha! Levante Mikhail, venha até mim!”. Rodrigo, localizado ao centro do clarão circular, acena para ele.

Quase que por impulso, Mikhail levanta numa determinação que até o momento não fazia parte de sua vida banal. Ele caminha lentamente em direção ao outrora amigo superficial. Os homens e mulheres ao redor tiram seu roupão, deixam a mostra o corpo virgem de vivências, agora leve e sem o peso da vida mundana. Ele atravessa o pequeno grupo, se aproxima de Rodrigo, ficando frente à frente.

O rosto de ambos é iluminado pela nave-mãe. O filho do síndico, de olhar suave e complacente, cuja beleza natural é encantadora, segura as mãos de Mikhail, sussurra “é chegada a hora”, e lhe beija os lábios. Os pés de Mikhail deixam o chão, seu corpo cândido flutua em direção ao céu, as pessoas na praça se despedem, acenando com as mãos. Aos poucos ele transpassa o véu das nuvens, entrando no clarão.

***

Ao abrir os olhos, o que faz com muita dificuldade, se surpreende com o que vê. As luzes desapareceram, dando lugar à uma escuridão familiar. O ar é congelante. Está deitado no chão árido da praça do condomínio, rosto colado no chão, o corpo inteiro doendo. Suas roupas estão ensopadas, um líquido vermelho desagua de sua boca. Onde foi parar o grupo de homens e mulheres? A nave-mãe? E Rodrigo? Foi como se nunca estivesse ali.

Gira os olhos lentamente, tentando observar pela última vez o céu, que enegreceu, despejando uma fina garoa. Sua sacada, lá em cima, a única do prédio com a luz acesa, faz sua visão congelar. Nenhuma palavra sai de sua boca, nenhum pensamento percorre a mente, o coração encerra seus batimentos.

O porteiro corre em sua direção, horrorizado. Grita por ajuda, reunindo uma pequena multidão. Teorias correm no boca a boca, deixando a vida de Mikhail, de uma certa maneira, mais interessante do que realmente era.

6 A Era de Aquario (Set-Out-2014) - Fil Felix colagem 2

Conto inspirado nas músicas Gods of Aquarius e Flying Saucers, da cantora Nina Hagen. Publicado originalmente no site EntreContos, para o desafio “Música”.

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