#Esse conto faz parte da Central dos Sonhos, para conhecer o projeto leia Bem-Vindo à Central dos Sonhos. E para entender a Pandora leia Pandora: a Droga Onírica.
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É noite em São Paulo. Mais uma sexta-feira entediante para Pedro, deitado em sua poltrona, de frente para um televisor antigo e da única janela de seu pequeno apartamento. Assim, ele consegue receber em seu rosto uma leve brisa enquanto dorme. Sua cama, quebrada e amontoada no canto do quarto, já não se faz útil. O colchão, nem ele sabe à que fim levou. Prefere passar suas noites numa poltrona grande e confortável, vendo algum programa banal antes de cair no sono.
Ao seu lado, uma mesinha com papéis, canetas e uma caixinha de madeira com dois frascos coloridos e pequenos, como mostras de perfume. São Pandora, a droga que Pedro toma todas as noites para poder dormir. Popular entre os jovens da cidade, dizem ser capaz de mergulhar a mente de quem a usa aos espaços mais profundos dos Sonhos.
Aos poucos ele desperta, sua visão ainda embaçada e a cabeça girando como quem está de ressaca. Ele tateia a mesinha, pegando um controle e desligando o televisor. Levanta, ainda cambaleante, e segue para a cozinha, logo atrás dele e próximo à porta. Apesar de pequena, é aconchegante e simpática, assim como todo o apartamento. Pedro, por trabalhar numa loja de antiguidades no Centro Velho, acaba decorando seu próprio lar com os objetos encalhados.
Terminando de beber um copo d’água, decide voltar a dormir, porém um barulho vindo do hall do apartamento lhe chamou a atenção. Apagou as luzes e se aproximou da porta. Já eram mais de 23h e seus vizinhos, a Laura e a D. Sandra, não costumavam incomodar.
Na fresta da porta, iluminada pela luz do corredor, se observava sombras oscilando. Instigado, Pedro tenta olhar pelo olho mágico e, surpreso, percebe que não há nada do outro lado. A luz permanece ligada, ele consegue ver o extintor na parede entre as duas portas da frente, o carpete das vizinhas e uma planta no canto direito. Ele movimenta a cabeça, tentando ampliar seu campo de visão. Como um relâmpago, uma senhora passa em frente à porta. Seu coração salta, ele se distancia dela. Não era suas vizinhas. Quem poderia ser?
Olha novamente pelo olho mágico e se surpreende ao ver a senhora, de feições cansadas e cabelos brancos, parada de frente à porta. Como se o observasse. Com os olhos vidrados e o coração cada vez mais acelerado, Pedro enfrenta seu medo e, num momento de pânico, gira a chave e abre a porta com violência.
A senhora desaparecera, a luz do hall acendeu-se e, à sua frente, um envelope jogado ao chão. Ele o pega, abre e lê. O conteúdo, no entanto, o intrigou. A situação inteira o intrigou.
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Na manhã seguinte, ao acordar, se pergunta pela noite anterior. O que foi tudo aquilo? Decidido a descobrir, procura pelo envelope misterioso porém não o encontra. Na verdade, também não recorda onde o guardou. Revirou a mesinha e alguns papeis jogados no chão. Nada.
Após tomar um café forçado, se dirige ao hall. Talvez alguma de suas vizinhas tenham percebido algo, também. Ou, até mesmo, aquela senhora esteja hospedada no apartamento de alguma delas. A da esquerda, Laura, uma jovem loira de algum trabalho duvidoso e simpática, negou todo o ocorrido. Ainda aproveitou para convidá-lo à entrar, fazendo-o recusar educadamente. Já D. Sandra era uma mulher estranha, dos seus 40 anos, cuja vida era um total enigma à Pedro. Sabia, apenas, que era viúva. Também negou qualquer envolvimento na noite anterior
De volta ao seu quarto, indignado por não conseguir alguma pista da senhora ou mesmo do envelope, senta-se na poltrona. Prestes a ligar o televisor, ouve um forte barulho vindo do apartamento ao lado, que permanece vazio há meses, mesmo com a alta procura no Edifício. O som, semelhante à uma batida, ficava mais forte à cada momento.
Ele levanta, coloca o ouvido na parede e se assusta com uma das batidas. Percebendo que ficava mais alta perto de um dos armários, decide afastá-lo para ouvir melhor. Para sua surpresa, havia um pequeno buraco na parede. Com certeza ele não estava ali quando se mudou, pensa.
Talvez o antigo vizinho ao lado fez um furo para pendurar algo e vazou do outro lado?
O som, apesar de ter cessado, não diminuiu a curiosidade de Pedro. Afastando ainda mais o móvel, consegue olhar pelo buraco. No outro quarto, iluminado por pequenos feixes de luz solar, não conseguiu encontrar nada demais. Apenas um cômodo vazio. Cansado da investigação, coloca o armário em seu lugar, senta em sua poltrona, observando a caixinha de madeira com a Pandora.
Só lhe restaram dois frascos. Talvez nem durassem até segunda-feira, dia que iria pegar mais com Liz, a vendedora da droga, que possuía uma loja de fachada na Galeria do Rock. Da última vez que falou com ela, por telefone, o estoque estava acabando. Pedro consome a substância há poucos meses, foi sua única saída à uma depressão e insônia profunda. Apesar do legado que acompanha a Pandora, ele nunca conseguiu adentrar em seus próprios sonhos. Pelo menos, não consciente disso.
Pensou em tentar ligar e falar com a moça, compartilhar dos estranhos ocorridos. Mas teve receio de ser confundido com qualquer um desses jovens usuários e paranóicos. Seu histórico também não ajudaria. Perdera seu parceiro de quarto há pouco tempo, e sua morte o assombrava. A própria ideia de morrer o apavora. Poderiam dizer que estava delirando.
Numa última tentativa de entender a noite que teve, interfona para a portaria perguntando sobre o quarto ao lado, se houve alguma mudança. Obtém uma resposta, porém esta com ar de ironias: talvez algum animal, quem sabe um pássaro, conseguiu entrar e ficou preso dentro do quarto, já que de vez em quando a janela era aberta para o cômodo pegar sol. O porteiro prometeu investigar no dia seguinte.
Duvidando de sua própria sanidade, após tantas negações, liga o televisor num canal qualquer, passando algum programa vespertino genérico. A ideia da Pandora, porém, não lhe saiu da mente. Começou a se questionar do por quê não sentia seus efeitos.
Sentando confortavelmente, olhando vez ou outra para as paredes ou o teto, não resistiu e retira da caixinha seu penúltimo frasco e o toma.
De cores diversas, cada Pandora contém cerca de 5ml de uma substância sintética ainda não estudada. Pedro passa a sentir seus primeiros sintomas, como o aumento da temperatura corporal e tontura. Sua visão, embaçada.
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Mudando de canal, sem perceber o que está assistindo, encontra um que nunca tinha visto. No programa, uma mulher de cabelo curto, louro platinado, o observava com atenção. Seu vestido de couro azulado reluzia. Trazia em seu pescoço um discreto crucifixo e em seus lábios a escuridão. Por um instante Pedro ficou hipnotizado pela figura, até que ela levanta a mão, ostentando um envelope branco. A imagem, por sua vez, é multiplicada pela tela do televisor.
Ele levanta da poltrona e se aproxima dela, consegue observar seus pixels. A estática faz os pêlos de seu rosto tremerem. A imagem volta a se torna uma só. A mulher abana a carta e começa seu discurso:
– Olá, Pedro….
Assustado, recua. Como isso é possível?, ele pensa.
– Acredito que isto lhe pertence. – Ela diz, mostrando o envelope. – Você está curioso quanto ao quarto ao lado, também. – Num movimento rápido, ela lança o envelope longe, que atravessa a tela e chega aos pés de Pedro, jogado ao chão.
– Você é algo da minha mente, imagino. – Ele tenta se recompor, voltando a se aproximar do televisor que, inexplicavelmente, é desligado.
Enquanto coloca os eventos em ordem, ouve a voz da mulher novamente. Dessa vez, porém, vinda do quarto ao lado. Ele sabia o que fazer: levantou, empurrou o armário e olhou pelo buraco na parede. Ao contrário da última vez, agora ele conseguiu enxergar algo, viu a mulher sentada numa poltrona semelhante a sua. Reparando melhor, percebe que tudo no quarto é igual ao seu: do armário na parede ao televisor e janela em frente à ela. Se afasta, prestes a comentar algo e, ao olhar em volta, suas coisas sumiram. Não estava mais em seu quarto.
Ao seu redor não havia nada, o apartamento estava vazio. A janela fechada, deixando entrar raros raios de sol iluminando a poeira no chão. Anda pelo local, chegando ao banheiro, parecido com o seu. Estranha as folhas molhadas no chão e, também, o vidro da pequena janela quebrado. Deduz que algum pássaro possa ter se chocado ali.
Voltando ao cômodo principal, ouve uma pancada na parede ao lado, vindo do seu – ou do outro – apartamento. Agitado, corre pra porta, decidido à ir lá. Mas ao abrir, dá de cara com seu quarto, com a mulher da televisão sentada em sua poltrona. Cadê o hall?, ele indaga. Ela dá de ombros, como se não soubesse. Ele olha para trás, mas a encontra novamente, no mesmo lugar. Pedro tenta girar lentamente, porém é inútil. Como se o quarto também girasse em sentido contrário.
– É inútil Pedro, e também perigoso sair daqui. Olhe pela janela.
Ele passa por ela, pelo televisor e encosta na janela. Ao olhar para baixo, a misteriosa mulher o empurra. Quando sente a queda, desperta assustado em seu quarto, com o áudio de algum programa noturno genérico.
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Dormiu por algumas horas. Nunca sonhara desta maneira. Logo anotou tudo que lembrava num bloco de notas em cima da mesinha. Sente uma vontade enorme de ligar para Liz, dividir a sensação e finalmente contar que teve um sonho lúcido depois de tantas noites.
Dez minutos depois ela já estava ciente da mulher que saiu da tela e do envelope. Será que minha mente quer me contar algo?, questionou. A vendedora, como de costume, foi evasiva em suas respostas. Ao contar que acordou ao ser empurrado, uma fórmula de escape dos sonhos, termina a ligação: o que aconteceria se eu morresse e não acordasse?
Já se passavam das 22h quando foi tomar banho. Em meio à ducha, repara na janela do banheiro. Quebrada. Assustado, termina rapidamente o banho, enrola a toalha no corpo e, indo para o quarto, escuta novamente o barulho vindo do quarto ao lado. Como se por reflexo, corre para o armário, o afasta e observa pelo buraco. Nada de novo, porém. Devido a noite, era impossível identificar qualquer coisa do outro lado.
Pensou em avisar o porteiro outra vez, mas o que iria falar? Que teve um sonho? Não. Decidiu ir ver o que se passa do outro lado por si mesmo. Pedro nunca se sentiu tão exaltado. Era como se uma corrente elétrica de curiosidade passasse pelo seu corpo.
Procurou por um martelo e algo que pudesse bater no trinco da porta. Encontrados, deu uma última olhada para o televisor, como se aguardasse a mulher de cabelo curto. Mas nada aconteceu. Nesse momento, ele ainda pensou que o que iria fazer era uma loucura, mas não hesitou e foi para a porta do apartamento ao lado. Tentou empurrá-la e em seguida deu uma batida no trinco, parando para ver se alguma das vizinhas não escutou o barulho. Para seu espanto, na segunda batida a porta se abriu, talvez devido a idade avançada do prédio.
Um forte cheiro de mofo e poeira adentrou suas narinas. Conseguiu encontrar o interruptor do quarto e ligou a luz. Não havia nada no lugar, exceto pela sujeira no canto das paredes. O banheiro também não continha nada demais, nem o vidro quebrado que esperava encontrar. Olhou pelo buraco na parede, enxergando apenas a escuridão.
Uma frustração abate seus pensamentos, como se tivesse sido enganado. Mas, no fundo, teria Pedro realmente acreditado em tudo isso? No sonho, na senhora e no envelope da noite anterior? Ou até mesmo no aviso da mulher dentro do televisor?
Angustiado, confuso e frustrado, volta a sentar em sua poltrona. Nem quer pensar quando saberem que invadiu o outro apartamento. Suas intenções de descobrir algo foram cortadas. A caixinha de Pandora gritava seu nome. E ele cedeu suas investidas. Mas uma voz rouca, como de uma velha fumante, o chamava da porta. Seu coração acelerou, como nunca antes, correndo em direção à ela. Seria aquela senhora? Ao abrir a porta, sentiu como se fosse cair.
E realmente cai… da sua janela no 14º andar. Pedro desvendou o mistério da carta.
O jornal local publica o suicídio de um jovem rapaz, que deixou um bilhete sobre a mesinha. Militantes culpam a manipulação da mídia. Será?
Fil Felix é autor, ilustrador e psicanalista. A Central dos Sonhos é seu universo particular, por onde aborda questões como memórias, desejos e infância. Fã de HQs, escreve seus comentários sobre quadrinhos desde 2011, totalizando mais de 600 reviews. Já escreveu sobre arte para diversos blogs como Os Imaginários e a coluna Asas da editora Caligo. Ilustrou os livros infantis Zumi Barreshti (2021, Palco das Letras) e Meu Avô Que Me Ensinou (Ases da Literatura), entre outras publicações.