*Este foi o 2º Capitulo do meu TCC “A LINGUAGEM DOS SONHOS NA ARTE DE RENÉ MAGRITTE”, para a graduação em Artes Visuais. Versão completa em PDF para download aqui. O 1º Capitulo Os Sonhos Segundo Sigmund Freud está disponível aqui.
Os sonhos sempre foram fonte de inspiração para os artistas, desde a Antiguidade com as esculturas de adoração à deuses que personificavam o Sono e o Sonho ao Romantismo, com pinturas que retratavam esses mitos (PARKER, 1996).
Mas foi somente na década de 1920, com o surgimento do movimento Surrealista, que os artistas passaram a tratar a arte como uma forma de entender o subconsciente e os sonhos. Influenciados pela obra de Sigmund Freud [Ver Os Sonhos Segundo Sigmund Freud], “buscavam transcender o mundo do pensamento consciente, ou a realidade” (TIME-LIFE BOOKS, 1992, p. 7).
O escritor Guillaume Apollinaire foi o criador da palavra surrealismo, no intuito de descrever a inovação artística em duas obras que trabalhou em 1917 (BRADLEY, 2004, p.6): “o balé Parade, de Jean Cocteau; e a peça As mamas de Tirésias, do próprio Apollinaire, à qual ele dera o subtítulo ‘Um drama surrealista’”. Para ele, esse surrealismo era uma “verdade além da realidade”, um “super-realismo”. Bradley ainda comenta que “nenhum desses eventos poderia ser descrito como ‘surrealista’, no sentido hoje atribuído ao termo”.
Entretanto, André Breton publicou em 1924 o Manifesto do surrealismo, adotando o termo para representar o “novo modo de expressão de que dispomos e que gostaríamos de apresentar a nossos amigos”, visando ainda o surrealismo como um movimento literário. (BRADLEY, 2004, p.6-7). Ele publicava seus textos (e de seus colegas) no periódico Littérature, porém era pouco o espaço reservado para as artes plásticas até a publicação de Surrealismo e pintura, que trazia reproduções de pinturas e esculturas. Breton também substitui Littérature por um outro periódico mais diversificado, o La révolution surréaliste, cuja última edição em 1929 trazia, pela primeira vez, o trabalho de Salvador Dalí e René Magritte, que mudara-se para Paris em 1927, após sua participação no grupo surrealista belga (BRADLEY, 2004, p.8-10).
Apesar de não ser possível dividir o surrealismo em duas fases distintas sem alguma perca do contexto histórico, de maneira geral pode-se dizer que o movimento passou por um período focado no automatismo da escrita e da pintura, enquanto o outro foca-se diretamente no sonho, coincidindo com a vinda de Magritte e Dali à Paris (BRADLEY, 2004, p. 32).
ANDRÉ BRETON E O AUTOMATISMO
Ao publicar o Manifesto do surrealismo e a revista La révolution surréaliste em 1924, Breton havia definido o automatismo como a prática surrealista mais importante, “o principal caminho de acesso ao maravilhoso”: (BRADLEY, 2004, p. 21):
Surrealismo. S. m. Automatismo psíquico puro, por meio do qual alguém se propõe a expressar – verbalmente, utilizando a palavra escrita, ou de qualquer outra maneira – o verdadeiro funcionamento do pensamento, na ausência do controle exercido pela razão, livre de qualquer preocupação estética ou moral.
As artes plasticas encontraram no automatismo uma forma de confiar na força criativa da linguagem visual, surgindo assim o desenho automático. Um dos precursores desta técnica foi André Masson, que “retirava um traçado do inconsciente direto para o papel. Só então ele permitia que sua consciência desse forma aos ‘rabiscos’” (BRADLEY, 2004, p. 21).
Apesar do desenho automático ter se mostrado um sucesso, a pintura automática, entretanto, encontrou dificuldades devido à sua natureza complexa, o que dificultava a espontaneidade do artista. Foi preciso, então, buscar outros caminhos para o maravilhoso, técnicas para desligar o funcionamento racional da mente, para que criasse imagens visuais além da vontade do artista, se assemelhando à escrita e ao desenho automáticos (BRADLEY, 2004, p. 21-22).
Dentre as técnicas desenvolvidas pelos pintores no intuito de auxiliar neste automatismo, estão a frottage (esfrega) e grattage (raspadura), de Max Ernst, que criavam manchas aleatoriamente, das quais o artista poderia desenvolver seu trabalho por cima; a pintura com areia de André Masson (aplicando areia à uma superfície com cola, aleatoriamente); o decalque; e o trabalho em colaboração, “um modo de criar imagens que desafiassem o aparato racional da mente individual e consciente do artista” (BRADLEY, 2004, p. 22-24).
Freud teve grande importância no processo do automatismo, influenciando diretamente André Breton que, durante a 1ª Guerra Mundial, servia num hospital especial para soldados em estado de choque por causa da explosão de bombas. Dentre as técnicas de terapia, Breton aplicava um método de associação freudiana (a livre associação), onde os pacientes reagiam à palavras pronunciadas pelos médicos com a primeira palavra que lhes viessem à mente. Breton utilizou desta técnica em sua escrita experimental (BRADLEY, 2004, p. 31).
Os trabalhos de Freud, comenta Bradley (2004, p. 31) ainda forneceram à Breton e ao surrealismo “um contexto e um vocabulário com os quais poderiam conduzir suas investigações acerca do automatismo na fala, na escrita e na produção de imagens”. Freud estudava as inclinações e desejos que estruturam a vida interior e o mundo externo da linguagem e dos objetos a partir dos sonhos. Suas pesquisas sobre o onírico e o desenvolvimento psicossexual do indivíduo faziam com que os surrealistas procurassem por uma arte voltada ao inconsciente, os quais adotaram essas estratégias, de maneira a transportar conscientemente o inconsciente para os quadros e assim se igualar ao pictórico da poesia automática.
PINTURAS DE SONHO OU PINTURAS ONÍRICAS
André Breton cria um segundo manifesto surrealista em 1930, relatando as dificuldades enfrentadas pelo movimento, porém reforçando sua visão de que o surrealismo é um caminho rumo a um mundo mental de infinitas possibilidades: “um ponto da mente onde a vida e a morte, o real e o imaginário, o passado e o futuro, o comunicável e o incomunicável, o alto e o baixo, deixam de ser percebidos como contradições” (BRADLEY, 2004, p. 10-11). O irracional, espontâneo e o inconsciente continuam sendo os principais temas do surrealismo.
É nesse período que surge o surrealismo em sua essência, como é conhecido atualmente, focado no inconsciente. Breton inicia uma série de experimentos denominados “temporada dos sonhos”, no intuito de investigar o potencial do inconsciente, explorando as “possibilidades do transe, dos estados oníricos da mente, em que poderiam retirar imagens direto do inconsciente (BRADLEY, 2004, p. 19). Breton dava ênfase ao experimentalismo, uma alternativa ao dadaísmo, que considerava estimulante porém destrutivo.
Este segundo manifesto coincide com a chegada de Salvador Dali da Espanha para Paris em 1929 e, por mais que não seja possível dividir o surrealismo em dois períodos distintos sem alguma perda do contexto histórico, de maneira geral é certo afirmar que nessa época o automatismo pictórico que dominou os artistas na década 1920 já tinha chegado ao fim, e os surrealistas estavam voltando sua atenção para o sonho, que contemplava mais de perto o ideal maravilhoso do surrealismo. Surge, então, as “pinturas de sonhos” ou “pinturas oníricas”: “quadros que representam ou refletem as condições do sonho” (BRADLEY, 2004, p. 32).
A principal diferença entre a pintura automática e a pintura de sonhos era que, no caso da primeira, o resultado final (a pintura) partia de um processo espontâneo com justaposição inesperada de imagens. A pintura onírica, por sua vez, o resultado final partia de uma imagem conscientemente escolhida e pintada com realismo “a fim de ‘fotografar’ imagens da ‘irracionalidade concreta’, sugestivas de um estado onírico” (BRADLEY, 2004, p. 33). Os pintores dessa fase, na qual destacam-se Dalí, Magritte, Tanguy e Ernst, possuíam uma técnica bastante minuciosa, pela qual baseavam seus efeitos na justaposição, utilizando de imagens imediatamente reconhecíveis e, ao mesmo tempo, que passassem um certo ilusionismo alucinatório.
A partir destas características, os artistas criavam obras que eram familiares e ao mesmo tempo desconhecidas, assim como o mundo dos sonhos. Familiar no sentido de serem realistas, permitindo que o observador reconheça de imediato os objetos recriados; e desconhecido por colocá-los (os objetos) em contextos diferentes do usual, como nos sonhos (BRADLEY, 2004, p. 34).
Como foi apresentado no primeiro capítulo, Freud considerava os sonhos uma consequência de desejos oprimidos, geralmente de cunho sexual. O surrealismo, apesar de se apropriar dos sonhos como foco de sua arte, também não deixaram de lado esta faceta sexual do inconsciente, como Fiona Bradley comenta em seu livro Surrealismo (2004, p.45):
Os objetos surrealistas são insólitos, desconcertantes, perturbadores e muitas vezes vagamente (ou até explicitamente) alusivos ao sexo. Brincando com o fetiche como realização ou a manifestação de um desejo, os surrealistas às vezes levavam esse jogo tão longe a ponto de atingir literalmente as implicações do fetichismo de verdade.
Bibliografia:
BRADLEY, Fiona. Movimento da Arte Moderna: Surrealismo. 2ª ed. São Paulo: Cosac Naify, 2004.
PARKER, Julia e Derek. O Livro dos Sonhos: Guia Completo Para Você Entender Seus Sonhos e Aprender Com Eles. São Paulo: Publifolha, 1996.
TIME-LIFE BOOKS. Mistérios do Desconhecido – No Mundo dos Sonhos. São Paulo: Abril Livros/ Time-Life, 1992.
Fil Felix é autor, ilustrador e psicanalista. A Central dos Sonhos é seu universo particular, por onde aborda questões como memórias, desejos e infância. Fã de HQs, escreve seus comentários sobre quadrinhos desde 2011, totalizando mais de 600 reviews. Já escreveu sobre arte para diversos blogs como Os Imaginários e a coluna Asas da editora Caligo. Ilustrou os livros infantis Zumi Barreshti (2021, Palco das Letras) e Meu Avô Que Me Ensinou (Ases da Literatura), entre outras publicações.