*Este foi o 1º Capitulo do meu TCC “A LINGUAGEM DOS SONHOS NA ARTE DE RENÉ MAGRITTE”, para a graduação em Artes Visuais. Versão completa em PDF para download aqui.
Os sonhos são, por definição, uma “representação em nossa mente de alguma coisa ou fato, enquanto dormimos”, algo imaginário sem fundamento ou coerência (MICHAELIS, 2014).
Devido sua natureza ilógica, os sonhos sempre chamaram atenção desde os primórdios da civilização. O neurocientista Renato Sabbatini (2000) comenta, em seu artigo Os sonhos têm significado?, que os sonhos sempre influenciaram a comunidade religiosa de todas as épocas, que os utilizavam como “caráter divinatório (sonhos proféticos)” ou como “manifestações paranormais e sagradas (comunicação com o outro mundo, com os espíritos ou com Deus)”.
Tais características permaneceram até meados do século XIX, quando surgiram as primeiras publicações que visavam interpretar os sonhos, dando-lhes significados de acordo com uma simbologia pré-definida. Em O livro dos sonhos (1996, p. 22), dos autores Julia e Derek Parker, é possível encontrar exemplos destas primeiras definições: a publicação de O livro real dos sonhos em 1830 pelo inglês Robert Cross Smith, utilizando códigos para a interpretação dos sonhos; e dos conceitos do médico francês Alfred Maury (sonhos decorrentes de estímulos externos) e do filósofo alemão Johann Fichte e seu díscipulo Friedrich Schelling (“sonhos revelam temores e desejos inconscientes”).
Mas foi somente após Freud e sua A interpretação dos sonhos que o sonho passou a ser visto como tendo uma função fisiológica e conteúdo simbólico (SABBATINI, 2000), influenciados por assuntos do cotidiano. Esta publicação, também conhecida por Livro dos Sonhos, “abalou as convicções acerca do psiquismo que se tinha até então e abriu caminho para uma visão do homem como ente marcado pelo desejo e pela censura inconsciente” (FORRESTER, 2013, p. 11), tornando os sonhos uma distorção difícil de se decifrar.
A teoria freudiana dos sonhos influenciou alguns dos conceitos utilizados no surrealismo, como a escrita automática, a livre associação, a distorção, a simbologia e o estudo do inconsciente (BRADLEY, 2004).
PUBLICAÇÃO DE A INTERPRETAÇÃO DOS SONHOS
Sigmund Freud (1856-1939) foi um médico e psicólogo cujo principal interesse, em início de carreira, era o das neuroses e da sexualidade, que o levaram a publicar em 15 de novembro de 1899 o livro A interpretações dos sonhos (com data de 1900). Durante sua vida, publicou outros estudos como As pulsões e seus destinos, O inconsciente, Além do princípio do prazer, Fetichismo e outros, extensões de sua teoria dos sonhos. (FORRESTER, 2013, p. 87-91).
A interpretação dos sonhos foi publicado sem o apoio de Universidades ou periódicos científicos, sendo destinado ao grande público e, por consequência, alvejado pelos críticos da época (FORRESTER, 2013, p. 14). Assunto que será melhor explorado ao final deste capítulo.
Freud acreditava que os desejos eram o cerne de todas as questões analisadas, como John Forrester deixa claro em seu livro A interpretação dos sonhos: a caixa-preta do desejos (2013, p. 12): “A lição mais importante do livro é, sem dúvida, a afirmação de que a força motivadora dos sonhos é a realização de desejos”.
E em relação à quais desejos Freud se referia, tem-se:
“Tratando com imparcialidade a possível contribuição de diversos tipos de desejos: desejos remanescentes da véspera, desejos rejeitados pela mente desperta, desejos – como a sede ou o desejo sexual – derivados de sensações corporais experimentadas durante a noite, e os desejos mais profundos, recalcados no inconsciente e derivados da infância. Mas ele não tarda a descartar essa abordagem imparcial e a afirmar que “o desejo representado no sonho tem de ser um desejo infantil” (FORRESTER, 2013, p. 29)”
Em sua publicação, Freud ainda explicou a importância dos sonhos no processo analítico e descreveu todas as etapas que envolvem o ato de sonhar, além de excluir de sua teoria “as crenças religiosas e culturais, as quais vinculavam o sonho a uma experiência premonitória e supersticiosa herdada da Antiguidade através do senso comum” (OLIVEIRA, 2011).
Ao contrário da definição em dicionário dos sonhos dada anteriormente, sendo uma “representação em nossa mente de alguma coisa ou fato, enquanto dormimos”, algo imaginário sem fundamento ou coerência (MICHAELIS, 2014), Freud defendia que “o sonho é a realização (disfarçada) de um desejo (suprimido […] ou recalcado)” (FORRESTER, 2013, p.60), um produto do inconsciente onde “não há medo, esperança, culpa nem vergonha: há apenas desejo e aversão” (FORRESTER, 2013, p. 33).
Freud também explicou este conteúdo “imaginário sem fundamento ou coerência” da seguinte maneira: A ideia fundamental de que a distorção nos sonhos, que dificulta seu entendimento e por isso requer o trabalho da interpretação, é uma distorção dotada de um motivo: existe um agente, a censura, que distorce propositadamente. (FORRESTER, 2013, p. 72)
Mais de duas décadas após sua publicação, o escritor francês André Breton escreveu em 1924 o Manifesto do surrealismo, influenciado pela obra de Freud que “forneceu [à ele] e ao surrealismo um contexto e um vocabulário com os quais poderiam conduzir suas investigações acerca do automatismo na fala, na escrita e na produção de imagens” (BRADLEY, 2004, p 31).
PRINCIPAIS CONCEITOS E CONTROVÉRSIAS
O objetivo desta pesquisa é analisar cinco obras selecionadas de René Magritte a partir da teoria dos sonhos moderna, em particular a de Freud em sua A interpretação dos sonhos. Para tanto, destacam-se alguns conceitos básicos de sua teoria:
Simbologia e Livre Associação: Para auxiliar as análises, será utilizado como referência O livro dos sonhos (PARKER, 1996), que levanta a importância da simbologia defendida por Freud e traz, em seu conteúdo, definições e interpretações destes símbolos, e a técnica de Livre Associação (refletir sobre os símbolos dos sonhos de acordo com a primeira definição que vem à mente):
Freud afirmou que os sonhos são consequência da repressão de alguns de nossos desejos, tão estranhos a nossa natureza consciente que mesmo nos sonhos só aparecem sob a forma de símbolos (p. 14). Na tentativa de explicar a curiosa natureza dos sonhos, Freud levantou a teoria de que os sonhos muitas vezes combinam dois ou mais símbolos, de modo que um homem em um sonho poderia representar tanto o pai como empregado do sonhador, ou uma máquina poderia estar associada ao seu trabalho e ao seu lazer (p.15).
Conteúdos Latente e Manifesto: Parker ainda cita que “Freud [sugere] que nossos sonhos tem um conteúdo manifesto (o que acontece no sonho) e um conteúdo latente (o que o sonho tenta nos dizer)” (1996, p. 14), os quais serão relacionados à pintura de Magritte: o quadro em si como conteúdo manifesto (aquilo que é observável, seus símbolos e características); e a mensagem por detrás da pintura como conteúdo latente (o que precisa ser interpretado).
Humberto Nagera (1981, p.31) define que “’conteúdo latente do sonho’ refere-se a todas as partes de um sonho que não são manifestas mas somente se descobrem através do trabalho de interpretação”. Criando a analogia com a pintura (o sonho), percebe-se a necessidade de interpretá-la.
Distorção: uma característica particular dos sonhos e, consequentemente, do surrealismo é a distorção da realidade, como Fiona Bradley comenta em Surrealismo (2004, p. 9): “[busca uma] comunicação com o irracional e o ilógico, deliberadamente desorientando e reorientando a consciência por meio do inconsciente”. Os sonhos são formados a partir de duas forças psíquicas, sendo que uma constrói o desejo expresso pelo sonho, enquanto a outra realiza a censura, o que termina por distorcer a expressão desse desejo (NAGERA, 1981, p.7).
Resíduos do dia: em relação ao conteúdo reconhecível do sonho, cotidiano, Freud o denominava de Resíduos do dia, que são “ingredientes essenciais na formação de sonhos. Em quase todos os sonhos está incorporado um traço de memória ou acontecimento do dia anterior, ou uma alusão a esse acontecimento” (NAGERA, 1981, p.45). Magritte costumava retratar em sua pintura objetos corriqueiros, para que fossem imediatamente reconhecíveis (BRADLEY, 2004, p.37).
Estes quatro tópicos serão utilizados como base para a construção e análise das obras de Magritte no capítulo 4. A TEORIA FREUDIANA APLICADA EM MAGRITTE. [Baixe a pesquisa completa em PDF aqui]
A publicação de A interpretação dos sonhos gerou controversas e não convenceu a comunidade científica da época, alcançando a marca de 1000 exemplares quase 8 anos depois (SABBATINI, 2000). O próprio Freud ficou “[desapontado] com a recepção silenciosa dada a seu livro” (FORRESTER, 2013, p. 38).
As teorias freudianas em relação aos sonhos são frequentemente discutidas e debatidas, apesar de bastante utilizadas na psicanálise. Sabbatini (2000), ainda em seu Os sonhos têm significado?, rebate os principais conceitos freudianos:
Atualmente, os neurocientistas sérios descartam praticamente todas as idéias de Freud como sendo inconsistentes com o que se sabe sobre o funcionamento do cérebro. Pesquisadores mostraram que as experiências vividas durante o dia, e a estimulação externa durante o sono influenciam o conteúdo muito mais do que experiências passadas. […] Os sonhos seriam, então, apenas “flashes” aleatórios e fragmentados de memórias adquiridas durante o dia, e que passam pelo cérebro várias vezes por noite, sem nenhuma lógica ou controle.
Sabbatini (2000) ainda afirma que a simbologia utilizada por Freud não é universal, pois retrata um contexto “europeu e branco, do começo do século”, e que a função do sonho continua desconhecida pela ciência, mas que é de “extrema importância para a saúde psíquica”, pois sua ausência pode desenvolver “alucinações e sérias distorções do pensamento, da percepção e da memória […]”. Porém é importante reforçar que “Freud viveu em uma época em que a expressão da sexualidade era extremamente restrita, sendo portanto natural que pensasse que a repressão de uma força tão poderosa provocasse distúrbios psicológicos” (PARKER, 1996, p. 14).
Em relação à universalidade da simbologia utilizada por Freud, Jung (seu discípulo) formulou a teoria do Inconsciente Coletivo: “uma parte da mente na qual estão depositadas as informações comuns a todos os seres humanos” (PARKER, 1996, p. 16). Explicando, assim, o porque de pessoas de culturas diferentes sonharem com os mesmos símbolos e significados. Parker ainda complementa: “isso não significa que não haja diferenças no modo como integrantes de diferentes sociedades interpretam o que sonham. A importância dos sonhos varia de um povo para outro” (1996, p. 17).
Bibliografia:
BRADLEY, Fiona. Movimento da Arte Moderna: Surrealismo. 2ª ed. São Paulo: Cosac Naify, 2004.
FORRESTER, John. Interpretação dos Sonhos – A Caixa-Preta dos Desejos (Coleção Para Ler Freud). 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013.
NAGERA, Humberto. Conceitos Psicanalíticos Básicos da Teoria dos sonhos. São Paulo: Cultrix, 1981.
OLIVEIRA, Isabella Rosa de. O Simbolismo nos Sonhos, 2011. Disponível em <http://www.cbp.org.br/cprs/artigo2.pdf> Acesso em: 01 de Setembro de 2014.
PARKER, Julia e Derek. O Livro dos Sonhos: Guia Completo Para Você Entender Seus Sonhos e Aprender Com Eles. São Paulo: Publifolha, 1996.
SABBATINI, Renato. Os Sonhos Têm Significado?, 2000. Disponível em <http://www.sabbatini.com/renato/correio/medicina/cp001027.html> Acesso em: 01 de Setembro de 2014.
SONHO. Em: DICIONÁRIO Michaelis. Disponível em:
<www.uol.com.br/michaelis>. Acesso em: 11 de março de 2014.
Fil Felix é autor, ilustrador e psicanalista. A Central dos Sonhos é seu universo particular, por onde aborda questões como memórias, desejos e infância. Fã de HQs, escreve seus comentários sobre quadrinhos desde 2011, totalizando mais de 600 reviews. Já escreveu sobre arte para diversos blogs como Os Imaginários e a coluna Asas da editora Caligo. Ilustrou os livros infantis Zumi Barreshti (2021, Palco das Letras) e Meu Avô Que Me Ensinou (Ases da Literatura), entre outras publicações.