Visitei a exposição Histórias da Loucura: Desenhos do Juquery no MASP e fiquei encantado com a singularidade das obras e da história do Hospital, de como a arte realizada por pacientes psiquiátricos era vista no início do século XX. Abaixo comento estes itens e os relaciono às ideias de Freud, ao inconsciente e aos sonhos, meu objeto de estudo.
O Asilo dos Alienados foi fundado em 1898 pelo psiquiatra Francisco Franco da Rocha, na cidade que mais tarde recebeu seu nome. Em 1929 passa a se chamar Hospital e Colônia do Juqueri e em seguida de Hospital Psiquiátrico do Juqueri, como é conhecido até hoje. Trata-se do maior complexo manicomial que já existiu no Brasil, chegando a ter entre 15 e 20 mil pacientes durante as décadas de 70 e 80. Sua história é cercada por polêmicas, principalmente as que envolvem terapia de choque e outras torturas comumente usadas no início do século XX. Surpreendentemente, o Hospital continua ativo, num sentido amplo da palavra. Há uma década que o Governo tenta fechar o complexo, que conta com cerca de mais de 100 internos dos períodos anteriores, que não possuem família e nem esperanças de reinserção social. Um local que continua nas sombras das atrocidades cometidas no passado.
O Dr. Osório César (1895-1979), junto de Nise da Silveira, foi um dos maiores psiquiatras do Brasil, tendo uma visão mais humana dos pacientes e estimulando o fazer artístico com os mesmos, e não apenas como terapia ou ocupação, mas como forma de arte. Osório, que também era músico e crítico, começou a trabalhar no Juqueri em 1925 e logo implantando sua forma de tratamento alternativa, realizando aulas de arte e exposições internas. Em 1939 ele lança o livro Misticismo e Loucura, com ilustrações de sua esposa na época: nada menos que Tarsila do Amaral. Atualmente, essa publicação é uma raridade.
Tendo como ideal o estudo da arte, os pacientes de Osório César não apenas desenhavam ou pintavam a esmo, eram realizadas verdadeiras aulas de arte, inclusive Lasar Segall e outros artistas chegaram a ensinar no Complexo Juqueri. Sendo assim, Osório defendia o trabalho dos internos como uma forma de arte pura e não patológica, conseguindo levá-los a duas exposições no MASP: a primeira em 1948 (I Exposição de Arte do Hospital Juquery) e a segunda em 1954 (Arte dos Alienados). Segundo suas próprias palavras: “dada esta riqueza […] não há realmente nada patológico, é meramente uma expressão do sentimento de um mundo interior diferente da nossa” (PEDROSA; CABANÃS, 2015). Em 1974 ele doa 102 desenhos ao MASP, tornando parte de seu acero e ganhando uma nova mostra em 2015: Histórias da Loucura: Os Desenhos do Juquery, que fica em cartaz de 12/06 à 11/10/15 no museu.
Durante as décadas de 1940 e 1950, boa parte destes desenhos viajaram o mundo em exposições relacionadas à loucura e psiquiatria. Em grande parte, tratadas como ilustrações de loucos, retratos de sua condição psicológica. O próprio MASP catalogou os desenhos doados como “arte dos alienados”, alterando há pouco tempo para “arte do Brasil”. Estudos como Expressões da Loucura (1922) de Hanz Prinzhorn e, mais tarde, História da Loucura (1961) de Michel Foucault, ajudaram a tirar certos estigmas de pacientes psiquiátricos e desfragmentar a definição de loucura. A arte criada por estas pessoas sofreram grandes críticas, sendo ridicularizadas em campanhas nazistas. Citando Foucault, “a loucura, que já esteve associada à liberdade e ao êxtase, passou a ser tomada como doença e foi relegada ao asilo, como condição que deveria ser moralizada, culpabilizada e reprimida.” (PEDROSA; CABANÃS, 2015)
O que mais me surpreendeu nesta nova mostra foi a riqueza de questionamentos e expressividade das obras do Juquery. Todos os 102 desenhos estão expostos em duas salas, quase todos realizados em papeis simples e com materiais comuns como lápis de cor, por isso o desgaste de alguns. Além de não possuírem títulos ou data de criação específicos, é possível entrar numa outra realidade através da perspectiva de mundo desses artistas. Também fica evidente a presença de uma aula por detrás das criações, graças a esboços e repetições de figuras, além de linguagens bastante particulares e a influência freudiana.
O artista com mais obras é Albino Braz, com 42 desenhos, muitos deles expostos em mostras internacionais nas décadas de 1940 e 1950. Numa delas, mais precisamente em Paris, ganhou como definição patológica a de “psicose maníaco-depressiva“. Sua predileção por retratar animais e nudez ganha uma leitura claramente freudiana, já que Freud sugeria “que os sonhos com animais selvagens representam as paixões mais sensuais e, algumas vezes, os instintos diabólicos guardados no inconsciente” (PARKER, 1996).
Os desenhos de cunho sexual podem demonstrar uma extravasão, um olhar diferenciado sobre sexualidade. A repetição de figuras podem indicar alter egos ou até personagens, todos em distintos papéis, interpretando diversas funções, o que nos faz voltar à Freud e sua relação entre homem x meio ambiente onde está. Braz coloca animais em conflito com homens e mulheres, há um semblante de temor em cada um, como de medo ou cuidado.
A simbologia e composição dos desenhos de Braz também nos remete às cartas de Tarot, principalmente pela disposição estética, como é possível perceber a semelhança entre a carta O Mago e o primeiro desenho da imagem anterior. O Mago é um arquétipo que representa o início de alguma jornada, um caminho de diversas possibilidades e novidades. Há na obra de Braz, ainda, um curioso espelho/ moldura ao fundo, com um busto feminino, no qual pode indicar ou questionar como o artista ou personagem se vê.
Outro artista bastante surpreendente na mostra é Homero Novaes, cuja técnica com o lápis é mais rebuscada que a de Braz, concentrando-se em figuras femininas. Esteticamente, é um primor. Contrastes, traços fortes e uma sombra incrível. Boa parte de seus desenhos representam colegiais, quase sempre nuas. Não há, entretanto, uma sexualização dessas figuras e sim se aproximando aos quadros renascentistas, inclusive nas curvas e seios.
Destaco os dois primeiros desenhos da página. Além do contraste branco/ preto, há uma quebra de postura e posição. Três mulheres de frente, uma de costas. Três mulheres de costas, uma de frente. O conjunto lembra as pinturas das Três Graças, retratadas por grandes nomes como Rafael e Botticelli e mostrando, geralmente, uma delas de costa. Personagens da mitologia grega, as Graças simbolizavam a prosperidade, os triunfos, harmonia e beleza. Novaes acrescenta uma Graça
Outro aspecto interessante, ainda desses dois desenhos (e aqui entra uma leitura bastante livre), é a posição das sombras. No primeiro está inclinada para a direita, enquanto no segundo está para a esquerda. Seria uma passagem de tempo ou a mesma observação. uma de frente e a outra de costas? Adentrar na mente de Novaes é um ótimo exercício para uma interpretação.
O. Doring trabalhava com uma outra linguagem, incluindo textos em seus desenhos (assim como Marianinha Guimarães, lá em cima). Num campo mais espiritual e cósmico, ele criou praticamente um mantra. Como uma das obras mais interessantes da mostra, é aqui onde realizamos uma viagem para o interior do inconsciente destes pacientes. “Santo glorioso amado verdadeiro”, “santo glorioso espírito luz”, repetido diversas vezes.
Fica evidente uma presença forte de religiosidade, que nos faz pensar num artista também religioso que expressa, talvez, uma esperança. Jung sugere, porém, que boa parte de seus pacientes que sonhavam com símbolos religiosos eram, na verdade, pessoas que tinham perdido sua fé. Um bom contra-ponto. Jung também atribuiu às mandalas a representação da psique humana. Para os hindus, ela também representa o universo, levando tal expressão artística à um campo de espiritualidade pessoal, independente de religião. A espiral é um símbolo de evolução, do percurso da vida, onde passado e presente se encontram pelo caminho, um objeto típico do inconsciente coletivo e, inclusive, símbolo aqui da Central dos Sonhos.
Mas o destaque da mostra fica, particularmente, para Pedro Cornas: trabalhando com formas geométricas que em muito lembram os trabalhos abstratos do Kandinsky, há sem dúvida um pedaço da psique do artista ali. O próprio Kandinsky, com suas teorias de cor e forma, adoraria conhecer estes trabalhos. Continuando com a definição jungiana dos círculos, podemos acrescentar uma preocupação de Novaes com a criação de algo praticamente vivo.
E o desenho está vivo. Remete a uma célula vista pelo microscópio, graças a um excelente efeito de sombra, como se os pequenos círculos se multiplicassem e transbordassem. O traço firme e a quantidade de detalhes pode refletir uma pessoa paciente, talvez. O sombreamento também cria estradas, caminhos dentro desta grande célula. Tanto em linhas retas quanto tortas. Até mesmo o círculo interno pode levar a leitura para um outro campo, ao lado do símbolo místico da Lua dentro do Sol.
Em outras obras, O. Doring mescla as figuras geométricas a textos e ganha a alcunha de “O Estudioso“. E é isso que seus desenhos parecem, estudos de algo maior. São diversas anotações ao lado das figuras, como que um diário, cheio de desabafos. Da mostra, são as obras que mais falaram comigo, como se estivessem ali recordações, mensagens.
A exposição Histórias da Loucura: os Desenhos do Juquery fica em cartaz até 11/10/15 e a entrada é gratuita nas terças e quintas. O catálogo com as obras e mais informações é vendido por R$10. Recomendo ir e adquirir, enriquece bastante a experiência. Observar a arte através de uma outra perspectiva é muito gratificante.
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Bibliografia Geral:
Catálogo Histórias da Loucura: Desenhos do Juquery. PEDROSA, Adriano; CABANÃS, Kaira. Coleção MASP. São Paulo, 2015.
À Espera do Fechamento, Juquery Agoniza e Vê Funcionários Virarem Pacientes. PASSOS, Anderson. iG São Paulo, 2014. Acesso em 15.07.2015
O Livro dos Sonhos. PARKER, Julia e Derek. Publifolha. São Paulo, 1996.
Fil Felix é autor, ilustrador e psicanalista. A Central dos Sonhos é seu universo particular, por onde aborda questões como memórias, desejos e infância. Fã de HQs, escreve seus comentários sobre quadrinhos desde 2011, totalizando mais de 600 reviews. Já escreveu sobre arte para diversos blogs como Os Imaginários e a coluna Asas da editora Caligo. Ilustrou os livros infantis Zumi Barreshti (2021, Palco das Letras) e Meu Avô Que Me Ensinou (Ases da Literatura), entre outras publicações.