Somos seres em eterna construção. Cada dia um bloco a mais, outro a menos. Na vida social, profissional, amorosa, familiar… Como um grande edifício, sempre em reforma. Assim, a sensação de completude é rara. Por vezes sentimos, literalmente, que nos falta algo. Uma ausência, uma oportunidade que perdemos, um relacionamento melhor, uma parte do corpo que incomoda, um amigo que se foi, falta de tempo, produtos que compramos e não usamos. Um vácuo que pode se transformar em ansiedade, agonia, remorso, culpa. Tentamos preencher esses espaços, esses blocos faltantes, com outros blocos que julgamos adequados. Nos distraímos. Ou tentamos, ao menos.
E há umas duas semanas senti a falta de alguns desses blocos em meu edifício, mesclado a um sentimento de nostalgia. Nesses momentos é bom encontrarmos nossa válvula de escape, provocar uma catarse interior para nos sentirmos cheios novamente. E a minha sempre foi através do que crio, surgindo dessa sensação um trio de colagens que conversam sobre três questões das quais mais sentimos incompletos: corpo, coração e alma; abrindo caminho para a descoberta da palavra banzo, de origem africana e inserida no Brasil no período da escravidão. Um termo que engloba e sintetiza tudo isso, um nome que podemos dar para esta sensação. Chamei as três colagens de Triplo Banzo, criando um pequeno poema em conjunto:
“Meu corpo é de topázio. Meu coração ulula. E minha alma, vesânia. Sinto pela derme sensorial, transcendendo os sentimentos, pingando. Gotejando na feição uma romaria em technicolor. Exoticidade inconfundível. Batuque do espírito, um xote cósmico ansiando transparecer o pretérito imperfeito. Mas mais que perfeito ao afeto… Triplo banzo.”
Yuko, em xxxHOLiC, diz que no tear que tecem nossa vida não há pontas soltas: “todos os fios estão entremeados entre si e estão revestidos de significado“. Um conceito que, em japonês, recebe o nome de hitsuzen: não existem coincidências. Hitsuzen e Banzo são nomes que damos a certos conceitos que, por vezes, seriam muito abstratos. E palavras possuem um grande poder sobre nós, tanto de nos elevar quanto para nos derrubar. Palavras podem machucar ou confortar. Enxergando essas questões através de nomes nos ajuda a entender melhor, assim como lidar com elas e termos novos pontos de vista: vazios não são em vão. Muitas vezes são necessários para que voltemos o olhar a nós mesmos. Que tiremos do outro a responsabilidade de nos fazer feliz. E reorganizar os blocos existenciais nem sempre é fácil, mexer com o que está lá no inconsciente, cutucar certas feridas, cicatrizar outras, baixar a guarda… Exigem exercícios de catarse. O meu vem da criação e, assim, fecho esse período de banzo e retorno ao hitsuzen com esta colagem:
Fil Felix é autor, ilustrador e psicanalista. A Central dos Sonhos é seu universo particular, por onde aborda questões como memórias, desejos e infância. Fã de HQs, escreve seus comentários sobre quadrinhos desde 2011, totalizando mais de 600 reviews. Já escreveu sobre arte para diversos blogs como Os Imaginários e a coluna Asas da editora Caligo. Ilustrou os livros infantis Zumi Barreshti (2021, Palco das Letras) e Meu Avô Que Me Ensinou (Ases da Literatura), entre outras publicações.