EXPERIMENTE UM BEIJO CONTRA A IGNORÂNCIA – Fil Felix

“Experimente antes de dizer que não gosta”. Essa frase é bastante simples, e aposto que fez parte da infância da maioria dos brasileiros. É comum, quando uma criança não quer comer determinada comida (geralmente as verduras e legumes), os pais dizerem que precisa ao menos experimentar antes de dizer que não gosta, já que muitas vezes está na mente a ideia de que aquele alimento é ruim. Então não é raro, após experimentar, a criança perceber que trata-se de algo gostoso. Essa frase não funciona em todo tipo de situação, claro. Mas ela guarda um sentido fundamental, principalmente nos tempos de fake news em que vivemos: tenha o mínimo de conhecimento sobre aquilo que vai criticar. 

Recentemente vimos uma situação curiosa na Bienal do Livro no Rio de Janeiro, uma situação que expôs a ignorância de muitas pessoas e também a arrogância do poder público. A história em quadrinhos Vingadores – A Cruzada das Crianças (escrita por Allan Heinberg e desenhada por Jim Cheung), à venda no evento, foi descoberta por uma mãe que, em seguida, iniciou uma guerra contra o título. O motivo: o beijo gay entre Wiccano e Hulkling, namorados da equipe Jovens Vingadores que protagoniza a história, seria inapropriado às crianças e, portanto, proibido no evento. O que se sucedeu foi uma onda de ignorância, hipocrisia e homofobia.

O prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, patrulhador da moral e bons costumes alheios, apoiou o discurso de que a obra era imprópria e mandou que a Bienal colocasse um aviso sobre esses gibis e que também fossem guardados em sacos plásticos. A Bienal recusou. Crivella, então, mandou fiscais recolherem todas as edições do gibi e qualquer outro que seguissem a mesma ideia. Felizmente, Vingadores — a cruzada das crianças — já havia esgotado e os fiscais, com cara de tacho, saíram de mãos vazias. A situação, que muitos ainda tentam não chamar de censura, teve diversas repercussões. E a ideia de colocar no armário o casal de adolescentes gays e heróis não poderia ter sido mais ineficiente, tendo em vista que o Brasil inteiro ficou sabendo da situação: a imagem percorreu os jornais televisivos e foi capa de jornal de banca, além de compartilhada milhares de vezes nas redes sociais.

E, como citado no início, faltou às pessoas que criticaram o tal beijo o mínimo de conhecimento tanto sobre o meio LGBT, quanto do universo dos quadrinhos, representatividade ou as definições de pornografia, para justificarem a censura. As crianças crescem em meio a contos de fadas e animações da Disney, em que beijo é algo extremamente comum e é usado como uma espécie de ferramenta nas histórias: é o beijo que salva a princesa de sua maldição, é o beijo que sela um final feliz, é o beijo que representa a afetividade de duas personagens. O beijo é comum, portanto, no universo infantil. Taxar o beijo dos dois heróis de pornográfico é reflexo de uma sociedade que ainda não enxerga a homossexualidade como algo natural e pertencente a ela e que mantém, então, um nível maior ou menor de preconceito. Sim, pra muitos é duro reconhecer, mas se trata de pura e simples homofobia, que muitos ainda a têm internalizada.

E, por outro lado, demonstra uma ignorância ainda maior quanto ao próprio meio que estão criticando: os quadrinhos. Não só a história em questão, Vingadores — a cruzada das crianças —, foi publicada originalmente em 2010 nos EUA e saiu no Brasil em 2012, ou seja, não é nenhum lançamento, assim como Wiccano e Hulkling não são os primeiros super-heróis gays dos quadrinhos. HQs com temática gay estão entre nós há décadas, mas geralmente em selos mais alternativos ou editoras menores. Só mais recentemente que a representatividade de minorias ganhou força e discussão nas duas principais editoras dos EUA: a Marvel, casa de heróis como Homem-Aranha, Vingadores e X-Men; e a DC, casa do Batman, Mulher-Maravilha e Superman. Enquanto a DC possui a fama de contar histórias de teor mais clássico, trazendo a máxima do super-herói imaculado e salvador da humanidade, a Marvel sempre apostou em heróis mais humanizados e próximos à realidade, sendo assim a que mais retrata esses temas.

Antes de Wiccano e Hulkling se beijarem e chocarem o Brasil que anda com pés de Curupira, tivemos a vilã Mística que justifica muito de seu temperamento debochado e raivoso devido à perda de sua namorada Sina, no final dos anos 1980. Ainda nos X-Men, temos o pioneiro Estrela Polar que foi um dos primeiros heróis do mainstream a se assumir gay nos anos 1990, além de protagonizar o primeiro casamento gay da Marvel em 2012. Rictor e Shatterstar foi outro casal do universo dos mutantes que surgiu nos anos 2000.

Por parte da DC, a maior representante talvez seja a Batwoman. A nova versão da heroína de Gotham surgiu na metade dos anos 2000 como uma mulher forte e determinada, protagonizando mais tarde uma série própria e bastante elogiada em 2011. Recentemente também a Arlequina assumiu um namoro com a Hera Venenosa, sua admiradora de longa data. Semelhante ao que ocorreu no Brasil, houve burburinho quanto ao casamento da Batwoman com Maggie Sawyer, culminando numa separação. O público acusou a editora de censurar o relacionamento da heroína. Para além dos heróis principais, temos o casal super violento Apolo e Meia-Noite do universo WildStorm, o debate sobre transexualidade com a Wanda de Sandman nos anos 1990, entre tantos outros casos.

Outro exemplo que podemos usar, a fim de tirar essa percepção que personagens gays estão surgindo agora, em 2019, são os Yaoi: um gênero dos mangás japoneses, que se popularizou a partir dos anos 1990, que envolvem romance entre dois homens; alguns mais leves, outros mais eróticos. E por incrível que pareça, muitas vezes são destinados ao público feminino, principalmente os mais leves.

Sem contar que crescemos assistindo personagens em programas de humor como a Vera Verão, Seu Piru, Pit Bicha e Pit Bitoca. Vimos o Pica-Pau e Pernalonga se travestindo de mulher e até, pasmem, dando beijo em outros personagens masculinos diversas vezes. E até aí tudo bem. O que nos faz lembrar que a sociedade aceita a homossexualidade apenas no campo da comédia e do caricato, da tiração de sarro, do uso de personagens extremamente afetadas para fazer graça. Quando veem o LGBT posto lado a lado do hétero, em temas reais, em situações reais e corriqueiras, surge a patrulha da moral e bons costumes. E o que é mais doloroso, utilizando das “nossas crianças” como escudo, como se um beijo gay fosse pior que tudo a que as crianças estão sujeitas, como a violência doméstica, o desmonte da educação pública e a fome nas ruas. Isso não choca os conservadores com tanta força quanto um beijo gay num quadrinho.

Experimente antes de dizer que não gosta” pode não se aplicar à todas as situações. Mas, ao prefeito do Rio de Janeiro, como também ao povo que o segue, poderia ficar como sugestão: experimentem, ou conheçam, antes de criticarem. Não precisam beijar alguém do mesmo sexo, mas podem começar com um dos principais mandamentos daquele que costumam seguir e utilizar de justificativa nos ataques e ofensas: amem o próximo, acima de qualquer diferença.

 

Um comentário em “EXPERIMENTE UM BEIJO CONTRA A IGNORÂNCIA – Fil Felix

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  1. Fil, entendo que o avanço das chamadas questões de gênero, insinuante e inevitável, sinalizando para um futuro menos autoritário nesses termos, menos maniqueísta, sofre agora com a reação. O mesmo acontece com o feminismo e a o antirracismo. É uma luta perdida a do reacionarismo, no sentido de fazer voltar todos para o armário, mas se a sociedade não reagir logo e à altura é possível que o nível de liberdade sexual se reduza muito, e a homossexualidade, que existe desde os tempos das cavernas, seja tolerada em círculos bem pequenos, nunca numa dimensão pública. Gays, travestis, transexuais, lésbicas e bissexuais precisam garantir o seu lugar ao sol, pois o sol não lhes será dado. A grande dificuldade é a barreira social, porque, por exemplo, gays da classe alta não se solidarizam com os da classe baixa, pois não se sentem no mesmo barco, em sua maioria. E numa eventual realidade de tolerância da homossexualidade apenas em pequenos círculos sociais, será nas elites e na média lata que isso ocorrerá, beneficiando-os.

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