SHAMSIA HASSANI, PRIMEIRA GRAFITEIRA AFEGÃ E O RETROCESSO QUE O TALIBÃ REPRESENTA – Fil Felix

Com o Talibã tomando o poder da capital do Afeganistão nesse final de semana, 16 de agosto, os fantasmas do retrocesso pairam uma vez mais sobre a região, gerando terror entre a população local e a comunidade internacional. Para entender um pouco sobre como o país se relacionou com as artes visuais nos últimos anos, trago um artigo sobre Shamsia Hassani, considerada a primeira mulher afegã grafiteira, cujo trabalho defende a liberdade e a paz. E como isso pode ser alvo do Talibã, voltando a proibir as mulheres de ir e vir, assim como censurando manifestações artísticas.

O Afeganistão é um país que possui um amplo histórico de guerras, conflitos e censuras nas últimas décadas, além de fanatismo religioso e político que subjuga as mulheres e condena a comunidade LGBT+. Foi comandado pelo Talibã, movimento islâmico extremista, por boa parte da década de 1990, retrocedendo os direitos humanos em diversos níveis (indo de execuções públicas a apedrejamento) até serem atacados pelos EUA em 2001, como consequência do atentado às Torres Gêmeas. Na época, era dito que o país estava dando refúgio ao Osama Bin Laden.

Desde então, o país vem lidando com diversos problemas, estando também no fogo cruzado entre EUA e Iraque. Com a saída das tropas norte-americanas da região, após 20 anos instaladas, o Talibã voltou a ganhar força e, nesse último final de semana, avançou sobre a capital, Cabul, instaurando o terror entre a população, que teme que o grupo volte a aplicar as leis segundo sua visão do islamismo, pela qual mulheres quase não têm direitos.

Shamsia Hassani nasceu no Irã em 1988, porém seus pais eram do Afeganistão. E isso é importante ressaltar, porque a questão da cidadania iraniana é algo bastante complexo e não é dada para imigrantes, mesmo que a pessoa nasça lá. Sendo assim, mesmo crescendo no Irã, Shamsia não pôde frequentar a Universidade de Artes do país, proibida para pessoas de outras nacionalidades. Sua família retorna ao Afeganistão durante a década de 2000 e Shamsia passa a estudar arte, logo se tornando uma figura importante dentro do movimento contemporâneo local, apesar de jovem.

Shamsia nas ruas do Afeganistão.

Ela se interessa pelo grafite e começa a criar murais em 2010, a partir de um workshop. Seu trabalho passa a circular, ganhando notoriedade e recebendo convites para expor em outros países. Hoje, Shamsia é considerada a primeira mulher afegã grafiteira e possui obras em paredes do Afeganistão, EUA, Itália, Alemanha, Índia, Dinamarca, entre outros países.

Em entrevista para o site The Culture Trip em 2016, Shamsia expressou seu desejo em deixar o Afeganistão famoso pela arte, não pela guerra, utilizando-se do grafite como um meio acessível a todas as pessoas, não estando limitado às paredes de um museu, e sim incorporado a locais onde precisa estar e ser visto. E mesmo ganhando notoriedade por seu trabalho, muitos ainda a viam como uma figura marginal, fazendo imagens e desrespeitando o islã, apesar dela comentar que não há questões com a polícia como ocorre em outros países em relação ao grafite.

Shamsia nas ruas do Afeganistão.

Um ponto muito característico em seus desenhos é a representação da figura feminina, quase sempre na cor azul. Ela comenta, ainda na entrevista, que as mulheres do seu país sofreram diversas limitações no passado, sendo praticamente apagadas da sociedade. E que agora, através de sua arte, deseja lembrar às pessoas que as mulheres continuam a resistir. Vale lembrar que durante o regime do Talibã, durante a década de 1990, as mulheres eram obrigadas a utilizar a burca (vestimenta religiosa que cobre todo o corpo), assim como proibidas de estudar, trabalhar ou sair de casa sem estarem acompanhadas. A arte ocidental, durante esse período, também foi proibida no Afeganistão, seja pela música, notícia ou entretenimento.

E em relação a essas figuras femininas desenhadas pela Shamsia, outra característica que chama a atenção é o movimento: todas são carregadas de ação, gestos, musicalidade, trazendo uma alegria e expressividade muito fortes. A artista quer que enxerguemos as mulheres afegãs de uma outra perspectiva, nova e contemporânea, superando as restrições e abusos sofridos no passado.

Algo que me chamou muito a atenção em sua fala foi a respeito da burca. Nós, ocidentais, muitas vezes usamos a burca como alvo para atacar o fanatismo islâmico, imaginando que é a fonte de todo o problema feminino. E Shamsia aborda essa questão, dizendo que a roupa não é o problema, que todas as mulheres poderiam deixar de usar e, mesmo assim, os problemas estruturais do país continuariam. Ela se refere ao acesso à educação, à liberdade e ao combate ao machismo, por exemplo. E complementa que “para mim, liberdade não é tirar a burca. Para mim, liberdade é ter paz.” Já que a roupa, por si só, não seria impedimento para a mulher que assim desejar usá-la e se manter ativa, podendo trabalhar e ser livre. O problema, nesse contexto, vai muito além das vestes.

Shamsia nas ruas da Índia (esquerda) e Itália (direita).

Imaginar uma mulher afegã livre, artista e grafitando em seu próprio país há 20 anos seria algo praticamente impossível. E nessas últimas duas décadas, as mulheres no Afeganistão vieram conquistando seus direitos de volta, de maneira ainda conflituosa e devagar, mas permitindo figuras como Shamsia Hassani se destacar e levar a visão do país para outras perspectivas, a partir de um movimento onde as mulheres voltaram a estudar, ensinar, trabalhar e fazer parte do governo.

Mas com a retomada do Talibã, tudo passa a ser nebuloso e tememos pelo pior. Em seu Twitter, Shamsia postou a seguinte frase em julho: “nunca entendi quem vocês são e por que não querem que vivamos em paz. Talibã? ISIS? Fazemos as pazes. Quero meu país, meu lar de volta. Quero paz e liberdade para meu povo”.

Pessoas arriscando a própria vida, agarrando-se à lateral de um avião ou sendo atropeladas no caminho, como as cenas que vimos nos últimos dias, mostram o desespero e o medo do que pode vir. Imagens chocantes, que não pude deixar de comparar com o contexto do O Conto da Aia (1985), livro da Margaret Atwood que imagina uma sociedade dominada pela religião, onde as mulheres também não podem ler ou estudar. E o mais duro é saber que a realidade é ainda pior que a ficção.

Quantas Shamsia o mundo perdeu devido ao Talibã? Quantas Shamsia o mundo perde, diariamente, devido ao machismo estrutural que paira sobre a sociedade?

Shamsia nas ruas dos EUA.

Fontes:

https://www.shethepeople.tv/news/afghan-women-artists-taliban-shamsia-hassani-rada-akbar-fatimah-hossaini/

https://www.shamsiahassani.net/

https://theculturetrip.com/asia/afghanistan/articles/art-is-stronger-than-war-an-interview-with-afghanistan-s-first-female-street-artist/

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