ARTEMISIA GENTILESCHI: VIOLENTADA, VINGOU-SE E DECAPITOU SEU AGRESSOR ATRAVÉS DA ARTE – Fil Felix

O mundo está longe do modelo ideal de igualdade, e todos os dias somos bombardeados por preconceito e ataques de todos os tipos. Se em junho é comemorado o mês do Orgulho LGBTQIA+ é porque teve muita luta no passado e, mesmo assim, ainda é difícil ser uma pessoa trans no nosso país, sem contar que chega a ser ilegal em tantos outros, por exemplo. É 2021 e as mulheres continuam lutando contra o machismo, continuamos denunciando o racismo estrutural e a xenofobia. Discriminação e segregação estão presentes em todos os meios, inclusive no meio artístico, que tem em suas raízes o elitismo e a misoginia.

Durante muito tempo as artes foram reservadas aos homens, algo que reverbera até hoje. Basta fazer um teste simples: tire todos os livros de autores de sua estante e conte quantos sobraram de autoras; conte quantos atores, roteiristas, diretores e músicos do cinema e do teatro, que não sejam homens e brancos, ganharam os principais prêmios. E na pintura a coisa não é diferente hoje e, principalmente, no passado. Uma das histórias mais impactantes e que ilustra muito bem tudo isso, que poderia ser uma história até mesmo atual, é da pintora italiana Artemisia Gentileschi, do século XVII.

Suzana e os Anciãos (1610)

Artemisia nasceu em Roma em 1593 e faleceu em 1656, considerada uma das pintoras barrocas mais expressivas de seu tempo, com forte inspiração no trabalho de Caravaggio. Filha do também pintor Orazio Gentileschi, foi instruída no universo das pinturas ainda criança e desde muito jovem já possuía um traço exemplar e um olhar apurado para a representação feminina. Em 1610, com apenas 17 anos, ela pintou a história bíblica de Susana e os Anciãos a partir de um viés traumático e de repulsa. A parábola diz que Suzana, uma mulher judia e casada, foi assediada e chantageada por dois homens, ameaçando difamá-la na cidade caso não se deitasse com eles. Ela recusa e, então, é presa e acusada de adultério e promiscuidade, condenada ao apedrejamento. É o momento em que o profeta Daniel intercede e pede uma investigação, evitando que uma inocente seja morta. Suzana foi retratada diversas vezes durante a era barroca, com alguns pintores focando na questão da nudez ou na dramaticidade, enquanto Artemisia optou pelos dois.

Arte e realidade se misturariam no ano seguinte, em 1611, quando seu pai trabalhava com o também pintor Agostino Tassi nos afrescos do Cassino das Musas no Palácio Rospigliosi. Tassi se tornou um amigo da família, frequentando a casa e inclusive ensinando a jovem sobre pintura. E Artemisia estava com 18 anos quando foi estuprada e violentada por Tassi, obrigada a tentar um casamento com o mesmo. Depois de meses e percebendo que Tassi não iria dar prosseguimento ao casamento, Artemisia e seu pai denunciaram-no à Justiça. E o que se seguiu, 400 anos atrás, não foi muito diferente do que acontece ainda hoje.

Judite decapitando Holofernes (1614-1620)

A vida íntima de Artemisia foi exposta para todos. Suas alegações foram questionadas e até mesmo sua virgindade foi colocada em xeque, humilhada na corte e pela população. Suas pinturas passaram a ser desacreditadas, com a autoria sendo dada ao seu pai. A opinião pública ficou contra a jovem e Tassi foi condenado ao exílio de Roma, saindo da cidade e permanecendo impune. Na tentativa de “limpar o nome” da filha, Orazio arranjou um casamento às pressas com Pierantonio Stiattesi e toda a família se mudou para Florença. Esse episódio marcou a vida da pintora, com todo o seu trabalho sendo enxergado e interpretado a partir desse evento: Artemisia passou a retratar outras mulheres da mitologia ou de parábolas bíblicas, quase todas em papéis imponentes, de heroínas e vingadoras.

Entre 1614 e 1620 Artemisia pintou sua obra mais famosa: Judite decapitando Holofernes, história do Antigo Testamento onde Judite se dirige até o exército inimigo, que vem oprimindo seu povo, e decapita o general. A pintura traz uma vivacidade e dramaticidade típicas do barroco, com foco na ação e na violência gráfica, trazendo o momento em que a garganta de Holofernes é cortada por uma espada, com o sangue jorrando e escorrendo, enquanto Judite termina o trabalho, ajudada por uma serva. Para além de suas qualidades, a pintura ganha outros ares quando é interpretada como um autorretrato. Muitos estudiosos e críticos defendem que Artemisia retratou a si mesma como Judite, enquanto Holofernes foi pintado como sendo Agostino Tassi. Judite decapitando Holofernes seria, dentro desse contexto, a emancipação e a catarse de Artemisia sobre o estupro sofrido, assim como uma vingança.

Judite e sua Criada (1614-1620)

A simbologia e a história de Judite ainda foram protagonistas de outras duas pinturas: Judite e sua Criada, pintada também entre 1614 e 1620, retratando as duas mulheres carregando a cabeça de Holofernes num cesto e atentas ao redor, indicando o que seria o momento após o assassinato; a vitória das duas e o retorno triunfal à cidade natal. Uma versão que toma como modelo uma pintura de seu pai feita em 1608, que também abordava essa mesma cena. Já entre 1623 e 1625, Artemisia criaria mais uma Judite e sua Criada, dessa vez abordando o momento em que a criada Abra está enrolando a cabeça de Holofernes num pano.

Judite e sua Criada (1623-1625)

Durante sua carreira, Artemisia pintou diversas outras mulheres mitológicas ou bíblicas sob uma perspectiva feminina, sendo por si só diferente do senso comum dominante na época, que era majoritariamente masculino. Pintou mulheres como Cleópatra, a deusa Vênus, Maria, Bathsheba, Lucrécia, Dalila, entre muitas outras. Artemísia também foi a primeira mulher a entrar na Academia de Belas Artes de Florença, tendo certo destaque enquanto viva.

A temática da morte, assassinato e degolação ainda viriam a surgir em outras obras suas, das quais destaco Jael e Sísera, pintada por volta de 1620, retratando o momento em que Jael está prestes a matar o general Sísera, apontando um prego para sua cabeça e levantando um martelo, e também Salomé com a cabeça de João Batista, em que temos sua visão sobre uma das histórias bíblicas que mais tarde ficaria eternizada em peça de Oscar Wilde. Salomé, inclusive, é uma das histórias de que mais gosto devido ao seu aparato visual e a simbologia em torno da dança e a sensualidade de personagem, culminando na cabeça de João Batista numa bandeja de prata.

Jael e Sisera (1620)

Infelizmente, o trabalho de Artemisia entrou para o esquecimento anos depois de sua morte, em 1654, em parte devido ao contexto envolvendo o estupro e em parte ao machismo, que dificultava a ascensão de artistas mulheres. Seu trabalho voltou a ganhar vida graças aos movimentos por direitos iguais que tivemos nas últimas décadas, com historiadores e críticos voltando seu olhar para as pinturas e a vida de Artemisia, apresentando-a novamente ao grande público.

Já na década de 1970 e 1980 ela se tornou um ícone e um símbolo feminista de força. Artemisia foi vítima de um atentado e viu seu estuprador saindo impune. Impunidade essa que é dada aos violentadores e retratada desde os tempos bíblicos e mitológicos, dos quais Artemisia buscou mostrar sua perspectiva e ressignificar o papel da mulher dentro dessa sociedade machista, dando-lhe protagonismo e importância.

Salomé com a cabeça de João Batista (1610 – 1615)

Impunidade que ainda vemos hoje em dia e que precisamos combater e denunciar. Se você conhece alguma mulher ou está sofrendo violência doméstica, disque 180!

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