EVA BONNIER: SENSIBILIDADE EM MEIO À INDIFERENÇA COM A MORTE E A DOENÇA – Fil Felix

Os dias passam e as notícias continuam a piorar. Estamos sobrevivendo à segunda onda da Covid-19 no Brasil, não vejo outra palavra que melhor defina esse momento. Enquanto o número diário de mortes ultrapassa a casa dos 3000, e não parece que vá diminuir tão cedo, completamos um ano desde que ficamos sabendo dos primeiros casos no país. E o governo continua com seu jogo de cadeiras, desentendimentos e dissimulações. Gostaria de escrever um artigo mais animado, mas as circunstâncias não me permitem. E o pior: a cada dia parece que nos tornamos mais indiferentes em relação às mortes e aos doentes. E entre uma pesquisa e outra, esta semana conheci (e gostaria que conhecessem) o trabalho de Eva Bonnier: uma artista sueca da virada do século XIX para o XX, que sofreu de depressão enquanto dedicava parte de suas pinturas a retratar e a homenagear amigos doentes.

Nascida em 1857, Eva Fredrika Bonnier teve o privilégio de crescer no seio de uma família abastada e influente, a família Bonnier, dona do que viria a ser o Grupo Bonnier, que é hoje uma cadeia de empresas envolvendo editora de livros e revistas, cinemas e até um canal de televisão. Era filha do editor Albert Bonnier e chegou a estudar na escola de arte Royal Swedish Academy of Art de Estocolmo em 1878 e, junto à também artista e colega da academia Hanna Hirsch-Pauli, mudou-se para Paris em 1883. Permaneceu na “cidade dos artistas” até 1889, desenvolvendo sua carreira artística e ganhando reconhecimentos, como participações e uma menção honrosa no Salão de Paris também em 1989.

Eva ficou conhecida por seus inúmeros retratos a óleo, fazendo parte do movimento realista e tendo influência dos primeiros experimentos que dariam origem ao Modernismo durante a virada do século XIX para o século XX. Ainda em Paris, ela e Hanna Pauli chegaram a dividir um ateliê e, inclusive, duas pinturas famosas de Eva desse período abordam o local: View from the Studio Door (Visão da Porta do Estúdio, 1885) e Interior of a Studio in Paris (Interior de um Estúdio em Paris, 1886), ambas trazendo uma iluminação branda, mas ainda assim complexa e intrincada, característica desses seus primeiros anos. Já em 1887, Eva faria Reflection in Blue (Reflexão em Azul), uma das muitas obras (e talvez a mais conhecida) em que a pintora retrata amigos, parentes e conhecidos convalescentes, nos convidando para refletir sobre questões como a doença, a morte e a passagem de tempo, tudo de maneira muito delicada e suave, sem apostar na dramaticidade do trágico, mas sim num certo realismo lírico, pois ela não retira o semblante dolorido ou o sofrimento, mas não utiliza deles para chocar, e sim como forma de nos sensibilizar.

Apesar da Eva Bonnier não ser uma artista muito conhecida, com parte de sua vida ainda sendo um mistério, muitas dessas obras chegam até nós ainda intocáveis e atemporais, como as boas obras de arte são. E a escolha por retratar os doentes talvez tenha sido uma forma de lidar com sua própria doença: a depressão. Não é possível afirmar quando e onde começou sua depressão, mas Eva escreveu diversas cartas para sua família na Suécia durante os anos em que viveu em Paris, relatando seus pontos de vista a respeito do que ocorria na cidade e também seu olhar para as causas sociais, pelas quais possuía muito apreço. Essas cartas chegaram a ser compiladas e publicadas no livro Pariserbref – konstnären Eva Bonniers brev 1883-1889 (inédito no Brasil). E retratar os enfermos fazia parte desse seu trabalho de cunho social, criando uma atmosfera e uma nova perspectiva sobre a situação, quase como uma homenagem, eu diria, sem contar que Eva possuía sua própria maneira de retratar as mulheres. Apesar de não ter sido de uma maneira subversiva, Eva fugia do modo mais tradicional à época, principalmente das mulheres frágeis e vulneráveis, expressões típicas de classes altas, ou até mesmo da beleza selvagem das classes baixas.

Magdalena (1887)

Em 1889, Eva retorna para a Suécia e tem uma vida conturbada durante toda a década de 1890. A começar pelo seu relacionamento com o escultor Per Hasselberg, que conheceu ainda em Paris. O envolvimento amoroso passou por altos e baixos e chegou ao fim ainda no começo da década. Entretanto, Hasselberg faleceu em 1894, deixando uma filha recém-nascida que Eva logo adotou. Após crises existenciais e questões envolvendo sua própria arte, Eva aos poucos foi parando de produzir para dedicar-se a trabalhos filantrópicos, especialmente ajudando o cenário artístico local. Em 1900, no início dos seus 40 anos, Eva decidiu aposentar-se como artista.

Devido ao capital financeiro e também à educação recebida por sua família, Eva Bonnier sempre foi bastante independente e muito inteligente, crítica de sua realidade e também solidária às causas sociais, em especial à classe artística. Passou os primeiros anos da década de 1900 morando com Julia, sua filha adotiva, ajudando a financiar exposições, viajando e incentivando a produção cultural. Durante uma visita a Copenhague em 1909, na Dinamarca, Eva ficou muito doente e, num dos eventos que permanecem enigmáticos até os dias de hoje, caiu da janela do hotel onde estava hospedada. Eva morreria dias depois, devido aos ferimentos da queda.

Convalescent (1990)

A história que se conta hoje descarta a hipótese de acidente e defende que Eva teria tentado o suicídio em 1909, com apenas 51 anos de idade. Seu próprio irmão, Karl-Otto Bonnier, teria dito que a febre provocada pela doença teria aumentado a depressão, culminando na sua tentativa de suicídio ao se jogar da janela. Um evento que é impossível de não ser associado às suas famosas pinturas de pessoas convalescendo, de quando Eva possuía um olhar terno para com elas, dando-lhes uma dignidade honesta, sem firulas. Infelizmente, em seus últimos dias de vida, Eva não conseguiu mais manter ou receber de alguém.

Trago este artigo hoje como uma reflexão, lembrando do quadro Reflection in Blue, desses meses em que estamos convivendo e sobrevivendo à Covid-19. Se há um ano estávamos aflitos e tristes ao ver os números de mortos que subiam na Itália, sem poder acreditar que 900 pessoas estavam morrendo por dia naquele país, e lidando com nossas autoridades que desmereciam a situação, hoje estamos indiferentes ao número de quase 4 mil mortes diárias no Brasil. Chegamos ao temido ponto em que muitos não estão mais sensíveis ou temerosos com a doença em si ou aos efeitos colaterais da quarentena, como a depressão e o desemprego. Parece que chegamos num ponto em que olhamos para os dados e “vida que segue”, cada qual à sua maneira. Vemos famílias e grupos aproveitando o feriadão prolongado, feito a princípio para minimizar o nível de contágio entre as pessoas, mas que pode sair pior que o remendo devido a insensibilidade alheia.

Pior que tempos difíceis: onde vamos parar?

Reflection in Blue (1887)

Bibliografia:

Eva Fredrika Bonnier, www.skbl.se/sv/artikel/EvaBonnier, Svenskt kvinnobiografiskt lexikon (artigo por Margareta Gynning).

Reflection in blue – Eva Bonnier – Google Arts & Culture, https://artsandculture.google.com/asset/reflection-in-blue-eva-bonnier/SAH8jceP6_nMQQ.

2 comentários em “EVA BONNIER: SENSIBILIDADE EM MEIO À INDIFERENÇA COM A MORTE E A DOENÇA – Fil Felix

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  1. Excelente texto, Fil. Os aspectos envolvendo o comportamento da sociedade diante da COVID-19 são muitos, do negacionismo à alienação política, passando pelo processo de desumanização. Entretanto, acredito que talvez aja, também, um componente de autopreservação para certas pessoas muito frágeis emocionalmente. Parece contraditório, mas seria o seguinte: se a pessoa assumir para si mesma que está diante de uma hecatombe que poderia em grande medida não estar do tamanho em que está, ela pode sair do eixo psíquico. Daí, prefere criar para si uma fantasia, cada vez mais frágil, de que “o bicho não é tão feio assim”. Curiosamente, o fato de fazer essa opção, pode ser um forte indicador de que essa pessoa já está fora do eixo.

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  2. Adorei o texto, Fil, não conhecia essa artista e fiquei emocionada ao ler sobre a vida dessa artista. Eu não entendo como é possível que nos dias de hoje, com milhares e milhares de pessoas morrendo, muita gente faça de conta que não está nem aí e ainda dando a desculpa de que “todo mundo vai morrer um dia”. Oi? Eu realmente não sei onde vamos parar… Eva é daquelas pessoas que fizeram algo de especial (muitas coisas, aliás) com a vida que tiveram, com a arte que praticaram… É o que faz muita falta hoje em dia.

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