UM PÉ DE PAPO – ENTREVISTA COM “PINCELADA NÔMADE” – Fil Felix

Um Pé de Papo é uma coluna de entrevistas com artistas e escritores, levantando questões sobre suas criações, inspirações, dificuldades e contribuição cultural. De maneira descontraída, todos deixam ao final uma muda, um “pé imaginário” para compor nossa floresta cultural.

Cristiane Amorim (35) ou Pincelada Nômade protagoniza nossa edição desse mês! Artista não binarie de São Paulo e com formação em Publicidade, Pincelada também já cursou Cenografia na SP Escola de Teatro e na Escola Livre de Cinema e Vídeo, em Santo André. Já trabalhou com teatro e cinema amador, e desde 2017 viaja com sua arte pelo Brasil pintando murais. Conheci seu trabalho através do Instagram e me apaixonei pela força de suas figuras. Confira nosso bate-papo:

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Fil Felix: Numa determinada postagem, no Instagram, você comenta que não sabe se fala sobre você ou sobre o mundo em suas artes. Pensando nessas representações, como você se relaciona com a arte e essas dúvidas?

Pincelada Nômade: É como se fosse um grande espelho, em que coloco em xeque minhas convicções e anseios. Eu digo que a arte é uma urgência pra mim, é minha forma de entender o mundo ou de, muitas vezes, não entendê-lo.  Eu exponho um pouco da minha bolha (porque a gente vive em bolhas)  e espero que reverbere em alguém que seja da mesma bolha ou de alguma completamente diferente. Para que a troca exista. No fim das contas é uma grande conversa.

FF: E como a arte surgiu em sua vida? Quais eram suas referências e inspirações no início?

PN: Comecei a desenhar desde muito cedo, meu pai trazia gibis e eu copiava os desenhos. Mas sem pretensão.  Então acabou que eu lia muito, gostava do trabalho do Dave Mckean nas capas de Sandman e de muitos ilustradores que na época trabalhavam com aquarela, nanquim e outras técnicas mistas, como o John J. Muth. Quando fiz curso técnico de Design, tinha lá uns 15/16 anos, comecei a estudar História da Arte e gostei muito do Surrealismo, do trabalho da Remédios Varo, Max Ernest e Magritte. Daí, com o tempo, as referências foram se somando e eu fui construindo uma estética mais própria.

FF: Você viaja pelo Brasil, pintando e criando conexões. O nome Pincelada Nômade surgiu antes ou depois dessas experiências? Conte-nos um pouco como o criou e a importância dessas viagens.

PN: Pra mim, viajar mudou tudo na minha vida. Eu não tinha uma relação profissional com o desenho, era um passatempo. Já tinha tentando vender algumas coisas, mas rolava só pra amigos. Em 2017 eu larguei SP e fui pra Goiás, rodei um pouco pela Bahia e tive muitas experiências que me trouxeram novos olhares pras coisas, inclusive um olhar novo pra cultura popular. Comecei a me interessar mais, trabalhava mais com manutenção e algumas coisas de agrofloresta na época. Ouvia muitas histórias. Me impregnava já a imagem dos caboclos, dos trabalhadores rurais. Em 2019 numa segunda volta pra São Paulo, eu decidi me dar uma nova chance de trabalhar com arte. E criei o Pincelada Nômade. Pra mim o nome faz muito sentido, porque eu trabalho assim: me movendo de um lugar pra outro, absorvendo e transformando o que vejo e entendo nas viagens.

FF: Seu traço é bastante característico, principalmente nas figuras híbridas que cria. Mas algo sempre me chamou a atenção: a constante presença de pássaros e do mar. Há alguma simbologia por detrás dessas duas peças?

PN: Sempre tive um fascínio pelo mar (mesmo não sabendo nadar, vá entender). Ele simboliza pra mim a mudança e o movimento. Nunca é o mesmo em nenhum lugar que você vá. E mesmo na mesma cidade a mudança das marés fará tudo ser diferente. A água tem uma conexão com o inconsciente, você pode representar inúmeros estados de espírito usando a metáfora do mar. Os pássaros pra mim sempre me lembram dessa conexão com a natureza, com a liberdade e com o desapego. Depois de ter largado a cidade, por assim dizer, e ir morar em lugares menores, senti muito a vontade de representar esses seres híbridos, que de alguma forma se misturam com a natureza, como se assim pudessem se equilibrar com ela.

FF: E por falar em figuras híbridas, a questão da dualidade também é muito presente no seu trabalho. E por ser artista não binarie, como você enxerga o gênero dentro do seu processo criativo e no meio artístico?

PN: Eu comecei a ter entendimento de mim como uma pessoa não binária há alguns anos, e conforme eu fui lendo, entendendo e processando essa identidade o meu trabalho naturalmente fluiu pra desenhar mais híbridos, numa alegoria a essa fuga da norma. Mas se olhar bem, efetivamente meus desenhos nunca tiveram gênero definido, sempre há características mistas. E por mais que um ou outro tenha uma barba ou algo assim, nenhum deles tem genitália ou mamilos. Fica um corpo mais neutro. No meio artístico, eu tenho procurado conhecer outros artistas plurais, há muitas narrativas e creio que cada vez mais haverá essa abertura. Porque a arte sempre foi plural, pessoas trans, pretas, mulheres, indígenas, não binárias sempre produziram. A diferença é que agora esses discursos são vistos. Quebrando, assim, o padrão branco hegemônico que ainda se vende por aí.

FF: Uma boa parte das suas artes são em muros, paredes e suportes menos usuais. Como e quando surgiu essa predileção?

PN: Eu pintava muito em papel, muito mesmo. Mas depois da primeira vez em que pintei num muro, criei uma facilidade e preferência por ele. Ele funciona como uma grande tela pra que qualquer pessoa possa ver, que de certa forma não pertence a ninguém, pertence à cidade. Gosto muito das marcas de pincelada na parede.

FF: Suas próximas paradas são Recife e Natal, em Outubro! Quais os lugares você mais gostou de pintar e a quais você ainda não foi e tem vontade de ir?

PN: Gosto muito de pintar em casa (São Paulo), mas adorei muito minha passagem pelo Maranhão e por Barra Grande (PI). Foram trabalhos gostosos de fazer, com muita abertura por parte das pessoas. Nossa!… lugares que eu gostaria de pintar: todos aos que eu ainda não fui, hahahah.

FF: A pandemia do coronavírus prejudicou muito quem trabalha com arte e cultura, mas ao mesmo tempo também impulsionou muitos aspectos no mundo da arte, principalmente o on-line, com exposições e projetos acontecendo em todo lugar. Como vem sendo esse período pra você?

PN: Eu tirei esse período pra estudar e melhorar meu trabalho, estudando temas e técnicas. Voltei mais à produção para o papel e tela. O que foi bom também, porque no papel eu posso gastar mais tempo em detalhes, camadas e sutilezas. Então, eu praticamente trabalhei on-line, com encomendas de tela e desenhos menores.

FF: Finalizando nosso Um Pé de Papo, se pudesse plantar uma semente ou um pé de qualquer coisa para colherem no futuro, o que plantaria?

PN: Se eu pudesse, plantaria uma pé de bom senso, porque tá em falta nos últimos tempos. E várias mudinhas de empatia. Talvez as coisas fossem melhores com um pouco mais dessas duas coisas.

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Conheça mais do trabalho de Pincelada Nômade através do seu Instagram: @pinceladanomade

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