JACOBUS VREL: O QUE NOS ESPERA LÁ FORA, DEPOIS? – Fil Felix

Uma das poucas certezas que temos hoje em dia, principalmente no Brasil, é que vivemos em tempos de incertezas. São dúvidas, preocupações e também medo pelo que está acontecendo e também pelo que nos aguarda mais à frente. E a arte, apesar de escorraçada e até votada como o serviço menos essencial de todos em tempos de pandemia (como mostrou pesquisa recente), sempre está aqui para nos amparar em suas diversas formas. E a arte tem o poder de ser atemporal, uma verdadeira viajante do tempo, e poder encantar ou instigar seja em qual época ou qual país for, cruzando e quebrando as barreiras geográficas e temporais.

As pinturas de Jacobus Vrel são exemplos desse tipo de arte. Criadas no século XVII, elas possuem essas duas características que tornam um punhado de tinta sobre tela em algo que ultrapassa o tempo e o espaço, sem necessidade de legendas ou de uma bagagem cheia de referências para poder compreender. Assim que vi sua obra mais conhecida (e que abre o artigo), a pintura Mulher na janela, acenando para uma criança, surgiu imediatamente uma associação aos tempos de hoje, à pandemia da COVID-19, ao isolamento e distanciamento social. E pesquisando mais sobre seu trabalho, me deparei com um universo de imagens que retratam de uma maneira bastante distinta o mistério do que há lá fora.

A vida de Jacobus Vrel, assim como suas obras, permanecem um mistério. Suas data de nascimento e morte são estimadas, sua cidade de origem e vida pessoal são desconhecidas. Até mesmo seu nome possui diversas variáveis, como Jan ou Jacob Frel, Frelle, Vrelle ou Vriel. Seus trabalhos datam por volta de 1654 e 1662, mas foi somente no século XIX que começaram a surgir mais pesquisas sobre sua história, e apesar de considerado um pintor bastante expressivo do Século de Ouro dos Países Baixos, Vrel permanece nas brumas até hoje.

De maneira geral, suas pinturas retratam o cotidiano holandês, suas ruas e o interior de suas casas, sempre na vertical. Mas o que o diferencia dos demais pintores desse mesmo tema é a maneira como ele o aborda, retratando personagens que parecem perdidas em si mesmas, quase sempre de costas para o observador e em busca ou instigada por algo que está além do seu espaço. A solidão nos seus quadros não conversa com a depressão ou tristeza, como estamos acostumados a associar, mas sim a uma aura de mistério, quase um enigma. Perguntamo-nos quem são essas pessoas e onde elas estão, queremos descobrir o que elas buscam, o que estão vendo, esperando ou escondendo.

Em Mulher na janela, acenando para uma criança podemos observar alguns pontos interessantes num primeiro olhar, como a cadeira quase caindo, o objeto isolado no chão e, claro, a figura da criança no lado de fora. Mas, num segundo olhar, podemos também indagar: “sobre o que se trata a pintura, o que ela quer nos dizer? Quem são essa mulher e essa criança, o que o gesto que ela faz pode significar?” e, a partir daí, viajar em todas as direções: é um pedido de ajuda? Um cumprimento? Ou até mesmo a angústia de ver a juventude lá fora, sem poder sair?

Numa outra série de pinturas, Vrel retrata uma mulher (talvez a mesma personagem à janela com a criança) ao lado de uma lareira em pelo menos três telas. As lareiras, por sua vez, são muito semelhantes e nos fazem pensar que se trata do mesmo lugar. Aliás, todas as suas pinturas de interiores parecem se tratar da mesma casa, como se as personagens estivessem presas. Seriam inspiradas numa casa real ou imaginária? Mesmo quando sua personagem, mulher, está conversando com alguém na rua ou olhando por fora da janela, ela está dentro da casa. Em contrapartida, suas pinturas das ruas chegam a ser teatrais e lembram até cenários, em parte por sua retratação na vertical.

Mas, voltando às três pinturas da lareira, pintadas entre 1654 e 1662, elas são por si só muito enigmáticas. Seguindo essa sequência que coloquei acima, temos a senhora sentada e olhando fixamente para a lareira, porém apagada, observando seu interior, enquanto na segunda ela está de pé, preparando para acendê-la. Já na terceira, ela está dormindo na cadeira, apoiando a cabeça num travesseiro encostado à própria lareira, ainda acesa. Apesar de criar essa sequência narrativa, ela é fictícia e pode ser lida em qualquer ordem. Os quadros são individuais, não sabemos ao certo qual foi pintado primeiro e quais as intenções do pintor. O porquê da fixação com a lareira, assim como a fixação por janelas, que aparecem em quase todas as suas pinturas. E é interessante reparar como tanto a lareira quanto a janela funcionam como canais que ligam o interior da casa com o que há lá fora.

E esta é uma das grandes características na obra de Vrel: cabe ao observador criar sua própria narrativa, desvendar seus mistérios. Assim como nos dias de hoje, temos a sensação de dúvida ao olhar seus trabalhos; de pensar o que nos espera lá fora, no mundo pós-pandemia, a insegurança e as dúvidas que nos cercam. Assim como a inquietação de permanecermos isolados, que chega a sufocar, distante do que costumava ser, observando a realidade através de nossas janelas.

Deixe um comentário

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.

Blog no WordPress.com.

Acima ↑

Crie um site como este com o WordPress.com
Comece agora