MARIA VESTIA AZUL: BREVE HISTÓRIA DAS CORES AZUL E VERMELHA – Fil Felix

Quando falamos sobre cor e gênero, a primeira coisa que nos vem à mente é a clássica associação de azul ser a cor dos meninos e o rosa ser a cor das meninas, certo? Mas é interessante comentar que esse tipo de associação é bastante recente, tomando maior forma após a 2ª Guerra Mundial, na década de 1940, graças aos esforços da indústria da moda. Em 1918, na revista de moda infantil Earnshaw, por exemplo, se dizia que o rosa era mais apropriado aos meninos, por ser uma variação do vermelho, cor que remete à força, e o azul às meninas, pela sua delicadeza. Essa associação, por sua vez, era derivada do simbolismo entre vermelho e azul que vinha sendo usado desde a Idade Média. O branco, inclusive, era a cor mais utilizada na moda infantil antes dos azuis e rosas pasteis tomarem conta, principalmente pela facilidade de poder lavar e ferver a roupa sem estragar a cor.

Recentemente, a atual ministra da pasta da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, causou barulho ao proclamar a seguinte frase: “Atenção, atenção! É uma nova era no Brasil. Menino veste azul e menina veste rosa!”. Memes à parte, ela endossava a marcha do Governo Bolsonaro contra a tal da “ideologia de gênero”, já que essa parcela conservadora do país não considera que o gênero seja uma construção social, não atrelado necessariamente ao sexo biológico. E o engraçado é que não apenas o gênero, mas até mesmo as cores e suas associações são construções sociais.

Como Damares agiria se soubesse que, séculos atrás, era comum a imagem de Maria usando azul e segurando um bebê Jesus usando rosa? E, como comentado, essa ideia de “azul-bebê” e “rosa-bebê” foi mais um jogo de marketing da indústria para poder vender artigos infantis do que qualquer outra coisa.

Madonna Entronada de Giotto (cerca de 1305-1310)

Isso nos traz ao tema deste artigo, abordar o simbolismo do espectro dessas duas cores, o azul e o vermelho, utilizados nas roupas de Maria e Jesus, respectivamente. E para isso nós vamos fazer alguns passeios no tempo para entender essas cores (duas das minhas preferidas!), começando pela arte pré-histórica realizada nas paredes de cavernas: a arte rupestre, cuja datação é algo bastante complexo e nem sempre exato, mas já é aceito que muitas das pinturas catalogadas hoje datam cerca de até 40 mil anos atrás.

Sem nos aprofundarmos muito nos motivos dessas pinturas, o importante aqui é ressaltar que as cores mais utilizadas pelos homens primitivos eram obtidas através de elementos da natureza, como carvão, folhas, frutos, gordura, insetos, couro e sangue animal, que eram moídos ou macerados, formando o pigmento e a tinta. Assim, as primeiras cores produzidas para “pintar” que se tem notícia são variações entre o preto, vermelho e ocre, formando até tons alaranjados, amarelados e o branco.

Apesar de parecer muito primitivo para os dias de hoje, vale lembrar que o corante natural carmim de cochonilha, que dá cor vermelha a muitos biscoitos, geleias e cosméticos, é obtido da cochonilha (inseto da mesma família daquela praga que dá nas folhas de plantas). Ou seja, muitos comem insetos em nem imaginam!

O vermelho, em particular, sempre teve uma associação com a força e vitalidade, principalmente por conta da associação direta com o sangue, uma cor vastamente utilizada e citada na literatura. Em contrapartida, o azul nunca foi uma cor fácil de se produzir e por isso é considerada uma das últimas preparadas pelo homem. O que chega a ser engraçado, por ela ser uma das “cores primárias”.

E para falar sobre o azul, temos que primeiro falar sobre a rocha lápis-lazúli, a preciosidade azul que era comparada ao ouro e uma das pedras favoritas no Antigo Egito. Por sua raridade, o lápis-lazúli chegou a ser comparado ao ouro e usado em ornamentos e amuletos reais, utilizados por faraós e muito valorizado por essa e outras civilizações, com objetos datados de até 5000 a.C. e encontrado em tesouros faraônicos, como na máscara funerária e num bracelete de Tutankhamon, que reinou por volta do século 1300 a.C. E dessa maneira o tom azul foi ganhando ligações com a alta sociedade, a riqueza e a realeza.

Outros povos conseguiam produzir o azul a partir de uma planta chamada “pastel”. Antes da Idade Média, porém, os europeus costumavam associar o vermelho à realeza e o azul à barbárie, devido à sua origem em outros povos. Afinal de contas, era na Índia (especificamente na região onde hoje é o Paquistão) que havia a maior fonte de lápis-lazúli. E isso se reflete nas artes visuais, já que boa parte das pinturas que datam até o século V abusam de tons vermelhos para figuras importantes.

A partir do século VI a Europa se rende ao azul ultramarino, obtido através do lápis-lazúli. Mas sua produção era extremamente cara, tornando o azul um tom raro e reservado para pintar figuras especiais. Nas pinturas religiosas, o azul passou a ser a cor mais usada nos mantos de Maria, enquanto Jesus continuou a utilizar o vermelho e, em outra ocasiões, o rosa, gerando uma tradição que atravessou os séculos e perdura até hoje.

Além da dificuldade em produção da cor, essa diferenciação entre o azul e o vermelho não denotava uma separação entre feminino e masculino, como o rosa e o azul de hoje: com o passar dos anos foi ganhando simbolismos mais profundos, como a relação entre mãe e filho.

A impressionante Virgem de Melum, pintura de Jean Fouquet (1452)

É válido comentar que tanto os egípcios quantos os chineses já haviam sintetizado o azul cerca de 3000 a.C., porém as fórmulas se perderam com o tempo. Sendo assim, o primeiro azul sintético a ser registrado data de 1709, o “azul da Prússia”, quando foi possível baratear o custo da cor. Já o vermelho, sempre foi um pigmento natural, fácil e barato, sendo sintetizado apenas em 1868, o “vermelho alizarina”.

Ao mesmo tempo em que o vermelho permanecia como uma cor relacionada à força e à vitalidade, foi ganhando novas associações ao Cristo: o sangue de Jesus, o Espírito Santo, a caridade e o sacrifício. Já o azul mantinha suas relações com a nobreza, devido o alto custo de produção, adquirindo um ar místico, de maternidade, mistério e celestial.

Tanto o manto azul de Maria quanto o manto vermelho de Jesus são utilizados na iconografia cristã até hoje, principalmente nas pinturas e esculturas como o Sagrado Coração de Jesus e a Maria, Passa na Frente. O bebê Jesus, por outro lado, tem registos em pinturas utilizando uma vestimenta rosa, por ser uma variação mais suave do próprio vermelho.

É claro, essa é só uma fração do que essas cores simbolizam. Conforme o tempo, o contexto e o uso, elas vão ganhando novos significados e representações, novos estudos e formas.

O interessante é observar essas pinturas criadas nos últimos mil anos adotando esse simbolismo cristão entre o azul e o vermelho, assim como sua origem quando voltamos mais no tempo e percebemos seu uso em outras culturas, da pré-história aos egípcios da antiguidade. Mas também é interessante dar-se conta do uso que elas possuem em nossa sociedade, tanto para o bem quanto para o mal. Da cromoterapia aos estereótipos com termos como “sangue azul”, passando pelo racismo e por essas imposições carregadas de preconceito entre rosa e azul bebê.

Maria, Passa na Frente e Sagrado Coração de Jesus

Aproveitando o espaço, o azul já apareceu ou foi tema de outros dois artigos meus aqui n’Os Imaginários. Deem uma olhada: “Zima Blue” e a História da Arte e Arlequins de Picasso: a Alegria e a Tristeza do Carnaval.

Um comentário em “MARIA VESTIA AZUL: BREVE HISTÓRIA DAS CORES AZUL E VERMELHA – Fil Felix

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  1. Adoro a história das cores! Eu sou suspeita pra falar, mas adoro azul, rs. Do rosa, digamos, estou aprendendo a gostar. É interessante também o fato de que alguns povos da Oceania demoraram um bom tempo a diferenciar o azul do verde, quando li sobre isso achei muito curioso. Obrigada pelo texto, Fil!

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