SÃO SEBASTIÃO: DE PADROEIRO CONTRA EPIDEMIA A ÍCONE GAY – Fil Felix

Sebastião de Narbona é um santo e mártir cristão considerado o padroeiro contra as pestes, epidemias, fome e guerra. Foi e continua sendo amplamente retratado na história da arte, e sua figura clássica – amarrado seminu num tronco e atravessado por flechas – tornou-se ícone da arte homoerótica.

Nascido na segunda metade do século III em Narbona, França, Sebastião migrou ainda jovem para Roma, onde se perseguiam e torturavam os cristãos. Alistou-se no exército romano por volta do ano 283, fazendo parte da guarda do imperador Diocleciano. Durante seus primeiros anos mascarou o fato de ser cristão e, inclusive, foi designado capitão da guarda pessoal do imperador. Mesmo como soldado romano, Sebastião tentava acalentar os cristãos que vinham a ser presos e torturados, levantando suspeitas. Por volta de 286 foi julgado traidor e condenado à morte, sendo amarrado nu e alvejado por flechas. Dado como morto, sobreviveu e foi socorrido por Santa Irene e, após recuperar-se, foi até Diocleciano falar em nome dos cristãos. E, mais uma vez, Sebastião foi condenado à morte, sendo espancado e jogado nos esgotos de Roma. Foi Santa Luciana quem resgatou seu corpo e o sepultou.

Séculos depois, Roma passava por uma grave peste em meados dos anos 680, quando o bispo da cidade decidiu trazer os restos mortais de São Sebastião para a capital, numa forma de súplica. Diz-se que a peste sumiu de imediato. Em outros dois momentos, em 1575 em Milão e 1599 em Lisboa, o santo foi chamado a intervir em epidemias e pestes que essas cidades sofriam. Dessa maneira, ele foi se tornando o padroeiro contra as pestes e epidemias, auxiliando seu povo a enfrentar tais doenças.

São Sebastião por Mestre das Cartas (c. de 1430)

A figura mártir de um jovem soldado romano seminu, preso a uma estaca ou árvore e trespassado por flechas foi amplamente retratado na história da arte (das quais algumas obras coloquei aqui, em ordem cronológica), sendo um dos santos cristãos mais reconhecíveis iconograficamente da história. Porém, suas primeiras aparições foram durante a arte bizantina, em mosaicos dos séculos VI e VII, ainda de maneira simples e sem identidade própria, misturando-se à figura de outros santos, mas geralmente seguindo o imaginário que as pessoas da Idade Média tinham dele: a de um homem adulto e maduro, inclusive com barba. Aos poucos São Sebastião foi sendo retratado como o jovem que conhecemos hoje, principalmente com o declínio da Idade Média e o advento do Renascimento, onde a nudez passou a ser mais difundida nas pinturas. O gravurista Mestre das Cartas chegou a criar, em meados de 1430, quando havia poucas figuras masculinas seminuas além da retratação de Cristo, uma gravura trazendo São Sebastião mais próximo do que viria a ser imortalizado.

São Sebastião por Sandro Botticelli (1474), Ticiano (1522) e El Greco (c. 1610-1614)

Com a chegada do Renascimento, muitos pintores retrataram São Sebastião (alguns mais de uma vez), entre eles BotticelliTiciano e El Greco, trazendo outro semblante ao mártir. Deixaram de lado sua versão mais velha e adotaram a de um jovem rapaz com corpo mais definido, influenciados pelo padrão grego do belo. A dor e o sofrimento pelas flechas foram ganhando um ar de êxtase, trazendo também a ideia de “iluminação” que muitos santos absorvem ao virarem mártires, expressando uma sensação de paz e alívio ao ter os olhos apontados para o céu. O artista Guido Reni, inclusive, chegou a pintar sete versões de São Sebastião!

Dessa maneira, o santo cada vez mais foi adentrando o imaginário popular e sendo retratado por diversos artistas, reforçando a figura de um jovem bonito e de corpo escultural, praticamente nu, questionando as barreiras entre o desejo e a castidade, a dor e o prazer. Mas, quando que o santo passou a ser tornar um ícone da cultura gay?

São Sebastião por Guido Reni (1616), Jusepe Ribera (1651) e Paul Delaroche (c. 1800)

Foi durante o século XX que São Sebastião passou a ser relacionado à arte homoerótica e também à cultura gay com maior frequência. Em seu livro autobiográfico Confissões de uma máscara (1949), o dramaturgo japonês Yukio Mishima comenta que a pintura de Guido Reni num livro marcou sua descoberta sexual, quando percebeu se excitar com a imagem de São Sebastião pintada por ele.  Já no livro Cores proibidas (1951), o autor dedica um capítulo inteiro ao santo.

Importante lembrar que Mishima se suicidou em 1970 e também é considerado um mártir. Para diversos comentaristas e críticos, há uma metáfora mais implícita entre a figura do santo e o sofrimento do preconceito pelo qual muitos gays passam, citando a dor das flechas que jamais é evidenciada e retratada em seu rosto, e o não entendimento da sociedade que também os ataca, à uma mais explícita em que relaciona as flechas em corpo à penetração.

São Sebastião por Ángel Zárraga (1912), Yukio Mishima (1968) e Salvador Dali (1982)

São Sebastião se disfarçou de diversos personagens da literatura do século XX, que se utilizou de seu nome e o retratou com uma sexualidade ambígua, como na peça De Repente, no último verão (1957) de Tenessee Williams. Já em 1976, foi lançado o filme Sebastiane, um drama histórico e em latim dirigido por Derek Jarman, considerado um divisor de águas no que diz respeito à retratação de São Sebastião: ele mostra de sua origem no campo à execução de maneira explícita, numa temática homossexual, com Sebastião (Sebastianus, no filme) exilado num povoado exclusivamente masculino e se relacionando com outros homens. Na cena da execução, inclusive, ele é dependurado nu e alvejado por arqueiros também nus.

Cena do filme Sebastiane (1976)

Desde então, vemos cada vez mais a figura de São Sebastião sendo retratada na contemporaneidade de maneira erotizada. A Igreja provavelmente evita tratar desse assunto, principalmente por ter pinturas de São Sebastião espalhadas por igrejas em toda a Itália. Mas é inegável como o santo se tornou praticamente uma pin-up no imaginário gay.

Nos últimos anos continuamos vendo sua figura sendo retratada em releituras pelo mundo afora, desde fotografias inspiradas nas obras do renascimento ao barroco como de Anthony Gayton, até releituras mais distintas como a de Richard Stott, que retratou Jide Macaulay como São Sebastião: um homem negro e mais velho. Vale comentar que Jide é um pastor gay nigeriano que prega para pessoas LGBTs em situação de risco, dando aindamais contexto para sua pintura.

São Sebastião por Anthony Gayton (2002) e Richard Stott (2019)

Apesar dos estudiosos atuais dizerem que muito da história de São Sebastião ser uma mescla de fatos e alegorias, quase como um mito, até hoje ele continua sendo venerado. E em tempos de coronavírus, resta pedirmos ao padroeiro contra as epidemias e ícone gay que interceda por nós!

4 comentários em “SÃO SEBASTIÃO: DE PADROEIRO CONTRA EPIDEMIA A ÍCONE GAY – Fil Felix

Adicione o seu

  1. Tenho uma pequena imagem de São Sebastião, feita de resina. É aquela imagem mais clichê, vendida em lojas especializadas, é vermelha a roupa que cobre “as partes”. Não sabia de tantas versões na pintura, sempre com o semblante de que “flechada não dói”. Muito legal.

    Acho que a ligação dele como “pin-up” (o termo escolhido foi ótimo) deve-se, também, pela postura do dorso e dos braços, algo feminino em algumas representações (como da imagem de que falei e da pintura de Ángel Zárraga) e pela ideia de penetração existente nas flechas.

    Seria legal se fizesse uma série sobre santos católicos e/ou orixás representados no sincretismo pelos santos, a partir do ponto de vista das artes plásticas. Iconograficamente, há imagens muito bonitas.

    Um belo trabalho.

    Curtir

  2. Quando eu era criança minha avó paterna me contava a história dos santos, ela era meio católica e meio umbandista. Era uma grande contadora de história, aliás, e eu era sua melhor ouvinte, rs. Acho que a história de que eu mais gostava era a de São Sebastião. Me entristecia imaginar alguém sofrendo isso que sofreu… Grata pelo texto, Fil!

    Curtir

  3. Post muito interessante. Na minha busca por textos para uma publicação sobre “Gay Art” em meu blog aacabei encontrando a sua publicação. Parabéns pela postagem!

    Curtido por 1 pessoa

Deixe um comentário

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.

Crie um website ou blog gratuito no WordPress.com.

Acima ↑

Crie um site como este com o WordPress.com
Comece agora