“TORRE AVÓ”: A FORÇA E A FRAGILIDADE DE ENVELHECER – Fil Felix

“Envelhecer é uma arte”, disse Adoniran Barbosa em sua canção de mesmo nome. Mas como relacionar-se com a velhice em tempos de pandemia? No artigo de hoje trago a escultura Torre Avó da artista contemporânea e sul-coreana Suki Seokyeong Kang, que me fez repensar os valores de força e fragilidade do envelhecimento.

Torre Avó (Grandmother Tower – Tower #18-1), 2018

Se é uma arte ou não (e nesse ponto podemos trazer até mesmo a velha pergunta sobre o que é arte), envelhecer numa sociedade capitalista como a nossa traz consigo diversas questões, principalmente de cunho “utilitário”.

Nossa sociedade cultua modelos de vida que não se aplicam à realidade e ignoram a diversidade do ser humano, como padrões de beleza homogêneos, o sonho da juventude eterna, a cobrança de se manter on-line à carência dos likes, a exigência de fazer parte da cadeia produtiva, de gastar e ter. E muitas vezes envelhecer significa, aos olhos dessa estrutura, não fazer parte da mesma.

A pandemia do novo Coronavírus mudou a rotina do mundo inteiro e nos tirou da zona de conforto. E as pessoas mais vulneráveis ao vírus são justamente as mais idosas, rendendo frases do tipo “mas só mata os velhos” para justificar a quebra de quarentena e a volta à rotina. Como se o “velho”, dentro desse contexto, fosse a moeda de troca ou o sacrifício a ser feito para mantermos o mundo girando. Ou, melhor dizendo, a economia funcionando e mantendo a desigualdade social que ficou extremamente evidente com o isolamento social e perdas de emprego, demonstrando também a fragilidade do sistema que criamos.

Vimos notícias de países extremamente afetados pelo Coronavírus, como a Itália, que chegou a pensar em utilizar a estratégia de guerra de focar em socorrer e salvar os mais jovens, caso tenha que escolher.

Estamos falando de um cenário extremo, claro, de uma situação que ninguém poderia imaginar. Mas ela só externaliza os valores criados para a população idosa. Já confessei em algumas situações que um dos meus maiores medos é justamente envelhecer, algo que também está diretamente relacionado ao meu medo da morte, pois também sou fruto dessa sociedade.

Com tudo isso em mente, me deparei com a obra Torre Avó da Suki Seokyeong Kang, uma artista multimídia da Coreia do Sul, nascida em 1977 e que trabalha com pintura, escultura, vídeos e coreografias, explorando o corpo humano e seus gestos, movimentos, cores, formas e texturas. Ela venceu o Baloise Art Prize de 2018, prêmio dado a dois artistas por ano, ganhando mais notoriedade e, no mesmo ano, uma exposição no museu Mudam Luxembourg, o Museu de Arte Moderna de Luxemburgo.

Uma de suas obras expostas foi justamente Torre Avó: uma estrutura com peças de metal revestidas de linhas, acopladas a partir de um centro gravitacional. Trata-se de um retrato abstrato da própria avó da artista, retratando pontos como sua estatura curvada e o andar mais cuidadoso. A arte contemporânea dos museus, geralmente um tabu nas rodas de conversa e odiada por muitos, como qualquer outro tipo de arte, é capaz de nos tocar por meio de sua essência e detalhes.

Torre Avó foi criada a partir de uma estrutura de metal, um material conhecido pela força e rigidez, mas disposta de tal maneira que o observador tem a estranha impressão que poderá desabar a qualquer momento. Por seu tamanho e curvatura, por mais que seja abstrata, podemos imaginar e traçar uma figura humana por cima. Não que essa seja a intenção da artista, que possui outras obras (que vou colocar no final do artigo) mais abstratas e que também podem retratar o corpo humano, mas ajuda a gerar essa identidade maior com a peça.

Performer interagindo com a escultura

Kang nos apresenta um trabalho pelo qual é possível refletir nossa sociedade atual, sua força e resistência aparente, mas igualmente sensível. Assim como a própria ideia da velhice, partindo do que é um retrato de uma avó: os alicerces que vamos ganhando com o passar dos anos e construindo nossa estrutura, que é tão frágil quanto a própria vida, mas também que nos dá firmeza para enfrentar as adversidades. Interessante comentar que Suki Seokyeong Kang enxerga a pintura como um espaço além da tela plana sobre a parede, um espaço tridimensional onde o passado e o presente coexistem. Ela traz, assim, sua forte influência da arte e tradições filosóficas antigas orientais.

Numa de suas citações ela comenta que não é o tipo de artista que apresenta visões e modelos do futuro, algo que é tendência no universo da arte contemporânea, principalmente ao abordar o papel que o meio ambiente terá em nossa sociedade, mas sim uma artista que fala sobre as coisas que acontecem no presente, das quais estamos mais familiarizados e fazem parte do dia a dia: “crio um espaço que as pessoas possam compartilhar”.

Em tempos de isolamento social somos obrigados a repensar a rotina, o espaço e a interação que temos uns com os outros, aprendemos a ter um novo olhar sobre o passar dos dias, sobre o lugar que estamos criando para o envelhecimento em nossos valores.

Sei que a interação entre obra e observador é única para cada um, independente de qualquer coisa, mas espero que sua escultura Torre Avó possa instigá-lo à uma reflexão, assim como fez comigo.

Suki e suas obras
Algumas das obras de Suki expostas numa exposição

3 comentários em ““TORRE AVÓ”: A FORÇA E A FRAGILIDADE DE ENVELHECER – Fil Felix

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  1. Querido Fil,
    Sempre uma aula…
    Excelente reflexão, lembrou-me de nossa conversa dia desses, de minha condição de envelhecente, de nosso País, que em breve será um País de velhos. Parabéns.
    Beijos
    Paula Giannini

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  2. Oi, Fil, seu texto me tocou profundamente porque sempre senti-me incomodada com a forma como tratamos nossos idosos. Ao invés de valorizarmos nossos avós pelo conhecimento adquirido, pela experiência e enxsinamentos que podem nos passar os vemos como móveis velhos atrapalhando nosso caminho. Muito triste isso… e muito bom o seu texto e a sua replexão. Abraço.

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