QUANDO A SAUDADE NOS ESCREVE – Fil Felix

A saudade é um sentimento universal, porém complexo de se descrever ou sintetizar. Muitos dizem que a palavra só existe no português, o que não é inteiramente verdade. Sendo de origem latina, há outras contrapartes em línguas românicas. Porém, o sentido ao qual demos à palavra provavelmente é único. Não se trata apenas de nostalgia, como geralmente é associada em outras línguas, ou sentir falta de algo ou alguém. É uma mescla, uma nostalgia do que já passou, a dor e o vazio gerados por saber que determinados momentos, situações, relacionamentos e experiências não acontecerão novamente. Guardados na memória, nos resta visualizar e sentir saudade. E um dos meios, ou instrumentos, que possuímos para amenizar essa saudade ou eternizar os momentos é a arte, em suas mais variadas formas: como na escrita, pintura ou fotografia. Há quem vá longe e produza até um filme ou livro inteiros para eternizar um evento, um marco ou uma pessoa importante. A arte, entre suas qualidades, sempre possuiu a função de registro, histórico ou não.

Johannes Vermeer, cerca de 1663 e 1665.

O livro Arte como terapia, de Alain de Botton e John Armstrong, diz que exercitamos a memória a partir da escrita e da arte, ao se concentrar em seus aspectos mais significativos. Além disso, numa descrição curiosa, desmistifica a dificuldade de se definir o que é e o que não é arte, de complicar os meios artístico ou deixá-los exclusivos a uma elite intelectual.

O livro comenta que, assim como precisamos de uma faca porque somos incapazes de cortar as coisas sozinhos ou que precisamos de uma garrafa d’água porque somos incapaz de armazená-la por nós mesmos, a arte também surge para preencher uma lacuna que nos falta, num campo psicológico.

Os autores separam a boa e a má arte de uma maneira similar ao modo como nos relacionamos com a saudade: a boa arte traz em si uma essência, consegue nos transmitir aquilo que nos é mais difícil de captar, enquanto a arte ruim vem como uma lembrança vazia. Quando estamos diante de uma boa arte, a sensação é como aquela saudade que permanece viva em nossa mente. Já o contrário, quando nos passa batido, é aquela vaga lembrança, que já se mistura entre tantas outras. No entanto, mais uma vez, essa ideia de boa ou ruim não depende somente de técnica ou conhecimento, mas ao meu ver muito mais da relação entre obra e espectador.

Se antigamente usávamos pincel e tinta, ou hoje tiramos fotos, talvez a intenção não tenha mudado tanto. Queremos registrar experiências para, em seguida, levá-las a alguém. Isso, unido ao poder de catarse do fazer artístico, torna a arte por si só de extrema importância. Independente do resultado final ou de seu valor, como seu receptor: um público seleto, a família, ao acaso ou para você mesmo, no futuro. O que, de certo modo, assemelha muito ao praticamente extinto costume de enviar e receber cartas. Um gesto que, além de simples correspondência, é um símbolo de nossa saudade. Símbolo esse que foi eternizado na tela de inúmeros artistas, em particular o holandês Johannes Veemer (1632-1675). Entre as obras do autor do clássico Moça com brinco de pérola (1665), duas se destacam por trazer o registro desse sentimento universal e, conforme comentado em Arte como terapia, utiliza de seus instrumentos (a tinta sobre a tela, as pinceladas do pintor, os motivos e a disposição escolhidos) para reforçar o que é mais essencial e significativo nesse registro, propondo uma experiência ao espectador.

Johannes Vermeer, cerca de 1657 e 1659.

Ambos os quadros, intitulados genericamente de Moça lendo carta, foram produzidos entre 1657 e 1665 e trazem uma disposição de personagens e objetos característicos na obra de Veermer, como um recorte de uma situação do dia a dia, quase sempre à beira de uma janela, que convidam o leitor a uma interpretação; a observar a feição dessas mulheres, principalmente o olhar e o movimento dos lábios, a maneira como seguram a carta e como estão posicionadas, tentar compreender o que está escrito ali.

O brasileiro Almeida Júnior (1850-1899) pintou, no ano de sua morte, o famoso quadro Saudade, que nos remete diretamente a Vermeer, e que considero até mais impactante. Como nossa singular “saudade”, Almeida Júnior sintetizou como ninguém esse sentimento no olhar e na posição das mãos de sua personagem, na lágrima que escorre pelo nariz ou na boca coberta pelo xale. Detalhes que, numa primeira leitura, já a torna uma obra tão especial. Mas, como toda boa obra de arte, uma segunda e terceira leitura nos aprofunda cada vez mais no registro proporcionado pelo pintor: há um chapéu de palha no canto esquerdo superior da cena, além de um livro, provavelmente de fotografias, sobre um baú ao fundo. Seria a viúva chorando a morte do marido, tentando esconder sua saudade ao cobrir o rosto e observar uma fotografia?

Almeida Júnior, 1899.

Os tempos certamente mudaram, mas saudade é atemporal. Seja por cartas, por mensagens antigas perdidas pelas redes sociais ou Whatsapp, é sempre um misto de nostalgia e tristeza nos depararmos com algumas delas, fato pelo qual ainda hoje, inúmeras décadas depois, ainda nos identificamos com essas pinturas. E o melhor, ainda continuamos a produzi-las! O artista russo Viktor Sheleg (1962), por exemplo, que utiliza de uma estética mais estilizada e de fortes contrastes, que lembra em certos pontos o icônico Gustav Klimt, criou em 2019 a obra Carta, que arremata tudo que foi dito neste artigo: a postura da mulher, o olhar fixo e pensativo, a carta ainda fechada no chão, o receio de abrir ou não. Ou seria de enviar?

Viktor Sheleg, 2009.

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