Nome Original: V for Vendetta #1 à #10
Editora/Ano: Panini, 2012 (Vertigo, 1988)
Preço/ Páginas: R$24,90/ 308 páginas
Gênero: Alternativo
Roteiro: Alan Moore
Arte: David Lloyd
Sinopse: Encenada em uma Inglaterra de um futuro imaginário que se entregou ao fascismo, esta arrebatadora história captura a natureza sufocante da vida em um estado policial autoritário e a força redentora do espírito humano que se rebela contra essa situação. Obra de surpreendente clareza e inteligência, V DE VINGANÇA traz inigualável profundidade de caracterizações e verossimilhança em um audacioso conto de opressão e resistência.
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V de Vingança é um clássico absoluto, praticamente impecável, com uma história cheia de referências e ideias que não se torna em nenhum momento difícil, complexa demais ou cheia de “fru-frus”. Ao contrário de muitas obras “cults”, que o leitor/ espectador termina de ler/ assistir e não entende nada, por ser subjetiva demais, “V” descarta tudo isso e entra em contato direto com o leitor, sem rodeios. Com exceção das metáforas, tudo é muito claro e lógico. Não gosto muito do Alan Moore (ele é bem chato), mas essa obra faz jus ao nome que tem!
“V” é o homem da máscara branca, sempre sorridente, de capa preta e atitudes teatrais; inspirado visualmente no extremista Guy Fawkes, que tentou detonar o parlamento inglês em 1605. Mas V é, acima de tudo, a representação de uma filosofia, de um ideal político e social, da luta dos oprimidos, da busca pela liberdade e igualdade. V simboliza a nova ordem, o futuro melhor. Alan Moore construiu um personagem universal, um “símbolo”. Por isso não é difícil entender como que a máscara de V, hoje em dia, simboliza todo esse anseio por liberdade de uma nova geração, estando presente em quase todo tipo de protesto e manifestação ao redor do mundo. É como se a HQ tomasse vida própria e todo o conjunto de valores do personagem viessem à tona.
Ambientada num futuro Reino Unido de 1997, dominado por um governo totalitarista que subiu ao poder após uma guerra nuclear, Moore constrói seu roteiro mostrando esta realidade, onde o governo controla e manipula a mídia, criam-se campos de concentração para minorias raciais e sexuais, o povo tem sua liberdade de ir e vir retirada, há monitoramento por câmeras em todos os lugares (como no romance “1984”). Uma realidade fascista, suja e cruel. Diferente da nossa, porém não muito distante.
A história dá início após esses eventos, com uma população já conformada com a situação, entregues ao poder governamental, mas que “acordam” quando um mascarado anarquista (V) detona o Parlamento e ameaça destruir o Estado. E a HQ se desenrola, com as artimanhas de V para derrubar o poder, acertando as pessoas e locais certos, pondo em ação um plano perigoso e complexo. Em seu caminho cruza a jovem Evey, desolada por perder os pais na guerra, prestes a se entregar às ruas. Ela se torna sua aprendiz e, ao mesmo tempo, uma versão em desenho de nós leitores, tentando cada vez mais tentar entender o que se passa na cabeça de V, assim como seu real objetivo.
Em paralelo há os membros do Estado, que lutam pela sobrevivência nesse mundo-cão e pela atenção de Adam Susan, o “Líder”, o ditador que controla Londres a partir de sua base. Outro personagem importante é “Destino”, a máquina que obtém todos os dados de ligações, videos, imagens, informações pessoais e por aí vai dos cidadãos. Este governo tem um modelo bastante interessante, tendo como base a “cabeça” (Líder, o centro do poder) e cada um dos cinco sentidos que representam uma força estatal: o Olho (câmeras de vigilância), o Nariz (investigação criminal), o Ouvido (gravações telefônicas), os Dedos (força policial) e a Boca (responsável pela radio, por propagar decisões e ideais da Cabeça).
A HQ é divida por três “tomos” que, apesar de longos, prendem a atenção do leitor. O plano final de V só é revelado e finalizado ao final, e todo o percurso até ele é repleto de momentos delicados, fortes, às vezes em paralelo ao evento principal, mas que trabalham na evolução da trama.
Descobrimos que V foi um dos presos no Campo de Concentração, utilizado como cobaia em diversos testes, foragido após explodir o local, que foi encerrado logo em seguida. Seu objetivo é simplesmente se vingar do Estado ou há algo por trás? Sempre bastante filosófico e teatral (tanto na forma de falar e agir, mas também de arquitetar seus planos), é um personagem misterioso e sagaz, que nunca mostra seu rosto. Ele não quer ser o homem por detrás da máscara, e sim a representação de tudo aquilo pelo que luta.
Em contra-partida Evey é uma adolescente que, como qualquer outra, sonha em ter seu primeiro amor e se divertir, mas é podada devido à sociedade em que vive, sendo posta à diversos testes (tanto da vida quanto de V). E como a Fênix, ressurge depois de muita humilhação e sofrimento para auxiliá-lo na construção de um “mundo melhor”.
O curioso é que este “mundo melhor” não é nem de longe o imaginado. Alan Moore também mostra o que acontece quando o anarquismo reina, quando a desordem toma conta de uma nação e o caos é instalado, apelidada por ele como a “Terra do Faça o Que Quiser”. Esses dois lados da moeda é bem intrigante.
Destaco três cenas que me impactaram bastante. A primeira, quando V conversa com a Estátua da Justiça, questionando e respondendo ao mesmo tempo, um ótimo diálogo. Sua “amada Justiça” o traiu, debandou de lado, não merece mais seu amor. Ao final ele se despede e a explode. Sensacional! A segunda é toda a sequência da prisão de Evey. Desde os interrogatórios à cabeça raspada, mas destaque principal para as cartas da prisioneira da cela ao lado, que escreve sua história em papel higiênico, escondendo o lápis dentro de si para que ninguém descubra. É comovente. Já a terceira ocorre no “desfile” do Líder, que sofre um atentado ao estilo “Kennedy”. É uma sequência muito inesperada e bem executada (literalmente).
Já falei bastante e mesmo assim daria pra destrinchar “V de Vingança” em muitas partes, apesar de toda a trama ser bastante clara, há muita coisa apenas comentada ou sugerida. Poderíamos falar sobre o amor do Líder por Destino, mesclar aí no meio uma possível admiração por Lewis Prothero, que fazia a “Voz do Destino” e tinha um fascínio por bonecas. Ou até mesmo falar sobre a identidade de V, como foi sua vida antes de entrar nos campos de concentração? Por qual motivo foi preso? Mas deixemos isso pra uma outra hora ^^.
Os desenhos de David Lloyd são bem clássicos, com poucos detalhes e até “datados” em comparação à hoje em dia. Mas bastante expressivos. Um dos trunfos são as cores de Steve Whitaker, que dão um aspecto sombrio à Londres, mas bastante real. A iluminação feita por ele e sua equipe é ótima, principalmente na parte da “Disco Ball”. Ao contrário do que houve em “Batman: a Piada Mortal” (também do Moore) que foi recolorida, aqui é interessante manter a integridade da obra com seus aspectos originais.
A edição da Panini é caprichada, mas não de luxo. Possui mais de 300 páginas em papel LWC, capa cartonada, introdução do Moore e Lloyd, matéria especial publicada originalmente quando a obra ainda estava em andamento, vários esboços e ilustrações, duas histórias curtas que não apareceram na versão final da HQ, mini bio dos criadores e uma sessão de “notas e comentários”. Extras de dar gosto! Um verdadeiro clássico das HQs.
Fil Felix é ilustrador e escritor. Criador dos conceitos e personagens do universo da Central dos Sonhos. Fã de HQs, gosta de escrever reviews desde 2011, totalizando mais de 600 delas em 2023. Já escreveu sobre arte para diversos blogs como Os Imaginários e a Coluna Asas da editora Caligo. Ilustrou seu primeiro livro infantil em 2021: Zumi Barreshti, da editora Palco das Letras.